Jasper
Eu fui transformado em vampiro por Maria, passei anos em lutas e mais luta, matei pessoas inocentes e algumas vezes pessoas que deveriam ser punidas. Também matei aqueles que não eram nem um, nem outro, eram apenas inúteis, segundo as próprias palavras de Maria.
Aquele tempo me parece como se a minha consciência e as noções de certo ou errado não faziam mais parte do meu ser.
Eu sou extremamente grato por ter conhecido Peter, meu grande amigo, e por ele ter se apaixonado pela doce Charlotte. A devoção dele por essa moça era algo incrível, foi por ela que ele decidiu por em prova nossa amizade, foi por ela que ele decidiu fugir. E por sua atitude, eu comecei a cair em mim e perceber que o que eu fazia era errado.
Peter e Charlotte foram como um raio de lucidez na escuridão de loucura que tomava conta da minha vida.
Mas, se andar às sombras das pessoas cruéis já é ruim, andar com um casal feliz e sorridente também é bem torturante, pelo menos para quem consegue sentir tudo o que eles sentem.
Explico-me ao dizer que a felicidade deles era um sentimento bom e pleno. Me arrisco a dizer que o amor pode ser o sentimento mais intenso e gratificante do mundo. Mas, por outro lado, aquele sentimento tão forte que os unia e os transformavam em peças únicas de um mesmo quebra cabeças, não era algo que parecia que eu encontraria para viver por mim mesmo em vida.
Era como se, por eu ter feito escolhas erradas e por ter agido de forma irracional, estivesse sendo punido.
Eu seria fadado a viver eternamente sentindo a felicidade dos outros e nunca ter a minha própria e plena felicidade?
Depois do que eu fiz por eles, de quase os separar, eles voltaram por mim. Eles voltaram para me tirar daquele desastre que eu chamava de vida. Tornei-me eternamente grato por eles. Eu nunca poderia pagá-los pelo que fizeram por mim.
Eu não merecia tamanha devoção, companheirismo e querer bem. Não, eu não merecia. Mas eles eram capazes de me surpreender ainda mais e mais a cada instante. Era inconcebível, ao ver deles, que eu vagasse sozinho pela eternidade. Embora, ao meu ver, era o castigo justo por minhas atitudes.
Em momento algum eles quiseram me fazer mal, mas a felicidade eles era sufocante para mim. Eu comecei a passar a maior parte do tempo longe, para dar-lhes privacidade e também para poder limpar minha mente e tentar espairecer.
Num final de tarde cheguei à cidade de Rochester, já que estávamos “morando” nas matas ao redor dela. Eu me permitia caçar por ali, desde que tomasse cuidado de ver exatamente quem eu atacaria antes, afinal, matar o padre ou o senhor mais influente da cidade chamaria a atenção demais.
Lá haviam bêbados, drogados, cortesãs e desavisados que passavam a noite fazendo o que pessoas boas não fazem. Ou seja, pessoas cuja a “não mais existência” passaria desapercebido por quase todos.
Foi em um começo de noite que vi algo que me fez voltar mais e mais a Ronchester. Havia uma garota, loira, elegante, sorridente. Ela me lembrava alguém de meu passado. Mas eu não poderia ter certeza de quem, não depois de ter pedido a um vampiro que apagasse as minhas dolorosas lembranças de quando eu era humano.
Tentar lembrar de tudo não era o que eu deveria fazer, se eu as quis esquecer, eu tinha motivos fortes. E, ademais, a escolha foi totalmente minha. Eu sei que tinha plena consciência do que estava pedindo. Eu medi tudo antes de fazê-lo e não deveria me arrepender.
Voltando à garota, eu comecei a observá-la. Ela era linda, porém esnobe. Ela era de uma família de classe mediana, seu pai trabalhava em um banco, o que a rendia presentes caros. Por outro lado, eu a vi mais de uma vez conversando com outra garota, também bonita, mas de aparência humilde. Contudo, eram só elas, nunca a vi acompanhada de seus pais. O senhor era mais esnobe do que a filha, e a mãe, que demonstrava ter sido uma linda moça também como a senhorita loira, era mais do que os dois juntos. As poucas vezes que a ouvi falando, a senhorita tinha uma voz linda, era como se o mais lindo pássaro me cantasse uma canção, única e exclusivamente para mim.
Os irmãos da bela loura eram homens respeitáveis e a tratavam como uma princesa, porém eram mais novos do que ela. Ela recebia o mesmo tratamento e mimos de seus pais, mas nunca a vi recebê-los pessoalmente, as caixas sempre eram entregues pelas empregadas. Mesmo assim, ela era a única garota da família, o que a fazia ser um bibelô intocável.
Não era preciso conviver com eles para saber que seus pais colocavam todas as fichas em sua beleza para ascenderem socialmente.
Eu comecei a ir com mais frequência ao vilarejo para observá-la. Aquilo estava se tornando um hábito. Era insano, doentio e inconcebível. Mas era como se a parte “apagada” de minha mente quisesse dizer que ainda estava ali e que eu deveria me lembrar de quem se tratava para poder seguir em frente. Poderia ela ser um parente perdido?
Eu a via em sua janela ao observar o luar, a via escovar os lindos, longos e loiros cabelos. Pouco antes de dormir, ia ao quarto dos irmãos dar boa noite. Apesar de ser esnobe, era encantadora, simpática com quem conhecia.
Cheguei a conclusão de que se era esnobe, era porque sempre aprendera a agir assim, pois sempre viu os pais agindo dessa maneira. Como ela poderia ser tão diferente das pessoas que a ensinaram a crescer? Ela não tem muitas amigas, apenas uma que ela confia firmemente, a outra moça bonita, porém pobre. Com a moça, ela pode ser quem ela realmente é, não liga para costumes ou bons modos, simplesmente é o que é. Contudo, a influência da amiga não é suficiente para sobressair aos ensinos dos pais. Uma parte infeliz da história.
Uma noite, pude ver que dois homens, provavelmente pai e filho, foram a sua casa e ver sua felicidade tarde da noite. Ela nem dormira. Pude entender que sua vida deveria ter alcançado o local tão almejado, ela também seria feliz.
Todos um dia seriam felizes, menos eu.
Voltei derrotado ao meu canto. Peter e Charlotte estavam a minha espera, como de costume. E como eu usualmente fazia, fingi estar totalmente bem.
Eu deveria esquecer a minha fixação por aquela garota. Afinal, se eu fosse brincar comigo mesmo e dizer que era amor, eu saberia dizer que não era, pois sei exatamente como esse sentimento é, e não era o que eu sentia.
Eu estava apenas curioso para me lembrar. Eu deveria esquecer daquilo, era a coisa certa a se fazer.
Em Rochester havia várias pessoas, várias vidas, vários dramas e problemas.
Poder observar a vida das pessoas e continuar sem viver um fio de felicidade parecia insano, mas me peguei fazendo isso com frequência.
Eu me peguei perguntado o que poderia ter acontecido a mim se eu não tivesse me transformado. Mais de uma vez, eu me fazia perguntas do tipo: Será que eu me casaria? Eu teria uma família? Um emprego? Irmãos? Filhos?
Parecia masoquismo da minha parte, mas parecia que ter família e alguém para conviver era algo tão necessário para humanos quanto para vampiros. E para piorar, era eu quem sentia o sentimentos, as emoções das pessoas. Às vezes, eu as confundia com as minhas emoções, e isso era um problema para mim. Significava que eu estava muito envolvido com minhas vitimas, com quem iria me fornecer o almoço e o jantar. Eu não podia continuar sentindo isso, mas... E a linda moçoila?
Não, esquece Jasper, esquece. Lembre-se de todo o resto, menos dela. Até mesmo porque ela tinha uma família. Sim, e voltamos para o papo de “família”.
Mas, pensando mais nesse assunto, reparei que Peter e Charlotte nunca poderiam ser pais, afinal, vampiros não tem filhos. Vampiros tem criadores, isso foi o que aprendi com Maria. Para mim, aquilo era uma verdade extrema, inquestionável e... Bem, do modo como Peter e Charlotte viviam em “momentos só deles” e ela nunca havia aparecido “grávida”, me fez acreditar que aquilo era verdade. Afinal, fazia alguns anos que dividíamos o mesmo lugar a ser chamado de “lar provisório”, e não havia nenhuma criança me chamado de “tio”.
Embora parecesse insano da minha parte, eu voltava cada vez mais hipnotizado para Rochester, eu estava intrigado com a senhorita loira. Procurei por Peter, mas não o encontrei. Nem me propus a encontrar Charlotte, pois, se um estava sumido, com certeza o outro estava junto. E, acredite em mim, eu não queria ver nenhum momento de “desaparecimento” deles.
Voltei para a cidade. Andei sem rumo, percorri alguns bairros. Quem sabe mais tarde eu não me alimente? Bem, melhor não, até mesmo porque eu já me alimentei demais ontem e isso não é de meu costume. O que estava acontecendo comigo? Não era eu quem achava errado se alimentar de humanos, quem estava ficando com náuseas ao se lembrar do cheiro de sangue? Mas, meus sentidos vampíricos não deixavam por menos, quanto mais eu tentava me afastar, mas eu ficava atentado ao sangue. Seria assim para sempre, uma eterna tortura?
Vi que alguns homens estavam andando... Bem, às vezes tropeçando, caindo, aos risos. Era um grupo de homens. Todos seguravam alguma garrafa, a maioria com menos da metade do líquido. Era álcool. Provavelmente era rum e whisky. Inalei melhor o cheiro, uma das garrafas era vinho. Vinho dos fortes. Junto do cheiro de todas as bebidas, senti o cheiro do sangue deles, a pulsação de seus corações martelava em suas veias. Aquilo estava tentador, ninguém iria perceber a falta de um deles, certo?
Não, um deles é conhecido. Um deles... Um deles é aquele rapaz que estava junto de outro homem, devia ser o filho. Eles eram extremamente ricos, mas não eram modelo de virtude e caráter. Eles viviam na casa da senhorita. Hmm... Se me lembro bem, já a vi andando lado a lado desse homem, mas ele não me aparentava ser de confiança. Nunca fora. Não confio nele. Há muita ignorância, raiva e obscenidade presente nele.
Como é que alguém como ele poderia andar com a senhorita como aquela loira?
De qualquer forma, me forcei a não prestar atenção neles. Levantei-me e saí andando pela escuridão. Andei alguns quarteirões, preferi subir nos telhados das casas, quem sabe eu teria uma visão melhor das pessoas que estavam andando. Quem sabe eu encontraria a minha jovem e desconhecida senhorita loira?
Fiquei parado encarando o céu, as estrelas brilhavam, fazia uma linda noite. E a moça loira costumava sair em noites limpas como estas. Ao olhar a luz, me lembrei da senhorita. Sua pele era clara, não como a minha, mas era clara. Seus olhos eram profundos, magníficos, era como se eu pudesse ver sua alma através de suas íris.
Mas, então, a imagem da moça se dissipou de minha mente sem querer. Ouvi gritos distantes. Prestei atenção. Não eram tão distantes assim. Eles estavam perto, não muito longe do que três ou quatro quarteirões. Senti meu peito se comprimir, eu devia ver o que estava acontecendo. Fui correndo em direção aos gritos, e quando cheguei perto da praça, percebi que eu conhecia aquela voz. Ela pertencia à senhorita loira.
Corri em minha velocidade vampírica sem me preocupar em ser visto ou não. A moça precisava mais de mim do que eu dela, ela precisava de ajuda, então por que eu me preocuparia em deixar que um ou outro vissem que eu corria mais do que qualquer pessoa? Mais do que uma pessoa humana?
Parei bem à frente ao beco. Estava acontecendo algo que, se eu não me contivesse, haveria uma carnificina. A moça loira estava caída ao chão, uma de suas mãos delicadas massageava a cabeça, devia ter batido, estava perto da parede, a outra mão apalpava um pequeno pedaço de tijolo, segurando-o com força.
Pobre senhorita. Ela estava nua, com seu corpo todo à mostra. Me forcei a olhar para os homens. Eram aqueles bêbados que passavam antes com as bebidas nas mãos. Agora, em vez de garrafas, suas mãos estavam livres, com exceção de um que segurava junto de si um canivete.
O que esse infeliz pensa que vai fazer com isso para cima dela? Ele já deve ser o culpado por deixá-la livre das roupas, ainda queria torturá-la com a lâmina afiada? Não, não mesmo.
Resolvi por um ponto final na história. Aqueles homens tinham de sofrer por toda essa avareza, luxúria que eles estavam sentindo. Eles desejavam a senhorita, eles a queriam de qualquer modo, de preferência inerte. Mas ela estava tão cansada, desprotegida. Não, eles não iriam fazer nada contra ela, não novamente. Agora, que eu estou aqui, irei eu mesmo protegê-la. E esses infelizes irão pagar pelo o que causaram à ela, não importa se são de família rica ou não, se algum deles é o filho do prefeito da cidade ou o presidente da nação. Eles erraram e agora irão arcar com as consequências.
- Fiquem longe dela, ou... – Fiz uma pausa, já havia conseguido a atenção de todos. Deixei que eles terminassem a minha fala, afinal, iria acabar na mesma, eu matando eles e deixando a jovem sã e salva em sua propriedade.
- Ou o quê, homem?! Responde! – o rapaz que eu já avia visto antes, o filho do homem rico, perguntou.
Rapaz, você irá se arrepender de se achar mais corajoso do que eu. Você não enfrentou os seres que eu já enfrentei, você não é o que eu sou, eu sou superior. Então cale-se!