Singularity - Capítulo 10: Memórias

Saímos da favela e Marianne me levou para a biblioteca da qual era benfeitora. Ela entrou no prédio pelo telhado, já que a biblioteca já estava fechada a essa hora. Ela encontrou rapidamente o que estava procurando e, logo, eu tinha cerca de dez livros velhos e usados em meus braços.

“Esses são bem usados,” mencionei enquanto corríamos pelas ruas escuras – Eu não iria pular telhados tentando equilibrar os livros.

“São nossas leituras preferidas,” ela disse. “Nos divertimos tanto lendo eles. Vou passar por todas as criaturas míticas com você para que saiba o que é real e o que não é.”

“Existem mais criaturas míticas por aí?” Eu disse. “Bem, acho que faz sentido, mas na verdade, quantos seres míticos esse planeta pode aguentar e os humanos serem alheios a isso?”

“Nem todos os humanos são alheios, só os mais avançados. Eles nem vêem suas próprias vidas claramente para saber o que amam, então permanecem alheios ao que temem, ou seja nós. Não percebeu como eles gastam a preciosa vida que receberam? Se ao menos soubessem que coisa maravilhosa é viver, eles fariam tantas escolhas diferentes.” Sua voz tinha um tom cínico. Olhei para ela e, de fato, ela tinha uma careta em seu rosto perfeito.

“É difícil para você lembrar de sua vida de antes? Eu sei que tenho sorte por não lembrar da queimação, mas sempre penso que perdi algo por não saber meu passado.”

“Acho que isso é uma benção mista. Sou grata pelas poucas memórias que restaram, mas sinto falta da minha vida, sinto falta de provar comida e o sonho de ter um marido para envelhecer junto, e filhos para ver crescer. Sinto falta da minha família,” ela terminou num sussurro. Seu rosto de repente ficou nublado com as memórias de outra vida.

“Você não precisa me contar sobre sua vida anterior. Eu não queria me meter,” falei rapidamente. A dor óbvia dela fez com que eu me arrependesse de ter perguntado.

“É bom falar disso,” ela disse com um sorriso triste. “Minha vida agora é boa com Gregorio e o clã, mas não é uma vida que escolheria. Nasci na Irlanda em 1822, e minha família veio para Nova Iorque em 1835, quando meu pai não encontrava emprego lá.” A voz dela tomou aquele sotaque irlandes suave que já tinha ouvido ela usar algumas vezes antes. “Estávamos todos trabalhando na cidade, fazendo o que pudéssemos para conseguir dinheiro e sobreviver, mas era uma vida dura. Minha família era próxima, no entanto, e muito forte, e éramos felizes. Eu realmente não lembro muito da minha vida de antes, mas em 1840, eu estava noiva de um metalúrgico irlandês chamado Peter. Em 24 de junho, comecei um novo emprego em um depósito de trens como aprendiz de telégrafo, e nunca voltei para casa. Veja bem, havia uma guerra entre o clã de Paul e um clã invasor italiano, eu, inadvertidamente, fui parar no meio de uma das lutas. Eu estava dentro do escritório do depósito quando um grande incêndio começou. O fogo havia sido aceso para matar alguns dos vampiros que escondiam-se no depósito, e eu estava no caminho deles enquanto fugiam. Um deles me pegou – devia estar com muita sede – e correu comigo para os trilhos, onde começou a se alimentar. Paul e Michael apareceram, e o vampiro parou de se alimentar para lutar com eles. Na hora que Paul e Michael tinham matado ele e os outros, eu já estava mudando. Eles voltaram para limpar o que pensaram ser um cadáver, e me trouxeram de volta para a cidade como uma nova vampira.”

“Estou muito feliz por você ter um clã tão unido,” eu disse. Eu nunca tinha me dado conta da perda que ela deve ter sentido pela vida que foi tirada dela. Minha memória irritante de um buraco negro pode guardar tanta dor quanto eu jamais imaginei.

“Eu vigiei minha família depois que a sede de sangue do primeiro ano havia acabado, mas antes que eu soubesse, eles morreram. Conheci Gregorio em 1870 quando ele veio da Itália como um contato para trabalhar com os vampiros americanos nas grandes cidades e ajudar a controlar a Máfia. Nos apaixonamos no primeiro momento em que nossos olhos se encontraram, e nunca mais deixamos um ao outro por mais do que alguns dias,” ela estava sorrindo agora e o amor dela por ele irradiava.

“Por que o sentimento de amor entre parceiros é tão forte em nossa raça?” Perguntei. Eu segurava os livros mais perto do peito, para parar a dor. Eu estava sentindo tão forte a parte que faltava do meu coração depois de sua história, e eu tinha que saber um pouco de como era amar como um vampiro.

“Não mudamos depois que somos renascidos,” ela respondeu. “Apenas raramente um vampiro consegue mudar quem é, e um exemplo é quando encontra seu parceiro. Quando vi Gregorio, todo meu ser foi moldado para se adequar à ele e jamais posso estar longe dele sem ser só metade do que sou. O amor que sinto por ele só fica mais forte com o tempo. Claro, você parece capaz de mudar a si mesma mais que o resto de nós, então, talvez será diferente para você. Acho que é por isso que você é tão diferente de nós; você não sabe quem era, então pode ir inventando no caminho. Eu nem posso imaginar esse tipo de liberdade,” ela disse enquanto balançava a cabeça e olhava em meus olhos novamente.

“O que Paul e Gregorio eram antes?” Perguntei em voz alta, mas ela respondeu prontamente.

“Paul era um oficial inglês na guerra de 1812. Ele foi enviado para proteger a área oeste de Nova Orleans, e levou umas pequenas tropas na direção do Texas em uma tentativa de proteger. Eu não sei todos os detalhes, mas os clãs sulistas são perversos e ele foi transformado por um deles por causa de seu dom.”

“Seu dom?” Perguntei – claro que ele era dotado de alguma forma. Precisaria de um dom para organizar tantos clãs e manter uma paz tão tenaz. Por que eu não percebi isso antes?

“Ele é um líder nato. Ele toma boas decisões e as pessoas simplesmente querem seguí-lo. Como a maioria dos dons, foi ampliado depois que ele foi transformado, e agora ele lidera qualquer um que quiser. É por causa de Paulo que Nova Iorque não viu uma guerra interna de clãs em quase mil anos. Você não sentiu isso no baile?”

“Senti que ele estava no comando, e nunca sequer questionei o porquê. Acho que senti isso o tempo todo,” admiti, maravilhada pela sutileza do dom de Paul. Parte de minha mente começou a questionar se minhas decisões recentes haviam sido influenciadas por ele.

“E Gregorio?”

“Gregorio foi transformado em Milão em 1791,” ela continuou. “Ele foi escolhido por ser um lutador muito bom, e a Máfia estava ficando fora de controle. Ele tem trabalhado com controle do crime organizado desde então.”

Chegamos na casa deles e fomos para dentro, esperar o retorno de Paul. Fui até um dos sofás e comecei a folhear entre os livros. Escolhi Criaturas Míticas da Europa primeiro porque tinha algumas imagens verdadeiramente belas nele.

“Então, quais são reais?” Perguntei, curiosidade martelando na minha cabeça.

“Veja pela lista e eu vou te dizer,” respondeu Marianne, que estava sentada de pernas cruzadas em uma cadeira parecendo como uma garota de escola animada.

“Ogro?”

“Não. Ogros e Tróls eram normalmente um de nós. Nós gostamos de nos divertir entre as alimentações, sabe, nos vestirmos e assustar alguns pedestres. Além do mais, fingir ser um monstro feio tinha suas vantagens na Europa Medieval.”

“Banshee?”

“Nós de novo – mas só as garotas. Um Banshee é uma mulher adorável com um grito de arrebentar as orelhas que traz a morte. Parece familiar? Valquírias também são vampiras.”

“Gnomos e Leprechauns?”

“Não são reais, pelo menos acho que não são. Nós, no mundo dos vampiros não os encontramos ainda.”

“Múmias?”

“Sim, elas são reais, mas não voltam à vida. A idéia de uma coisa morta voltar à vida provavelmente foi originada por um vampiro entediado que estava trabalhando como arqueologista. Eu, pessoalmente, sei de um egiptólogo na Inglaterra que conta todo tipo de piada para as pessoas com quem trabalha. Existem muitos vampiros entediados e você não acreditaria no problema que eles causam.”

“Zumbis?” Isso não estava no livro, mas eu havia lido algumas histórias sobre eles.

“Oh, nós, é claro!” Marianne riu, “Nós sempre vamos de zumbis no Dia das Bruxas! Eu adoro fazer isso. Tudo que precisamos é um pouco de fuligem e roupas rasgadas, e podemos assustar os humanos pela cidade. É muito divertido, Alice. Você com certeza deve juntar-se a nós na próxima vez.”

Eu ri da idéia dos mortos brincarem de mortos, mas a idéia soou divertida.

“Incubus e Succubus?”

Marianne apenas olhou para mim com incrédula e então revirou os olhos e disse, “pense nisso.”

Só levou um segundo, “Não. Não posso acreditar. Nós? Mas não podemos fazer isso, podemos? Quero dizer, como um humano sobreviveria a isso?” A idéia era revoltante e desagradavelmente intrigante ao mesmo tempo.

“Mulheres humanas não sobrevivem, essa parte não está aí? Eu nem sei se é possível. Quero dizer, como isso não mataria um humano? Entretanto, sei de vários vampiros, homens e mulheres, que gostam de adicionar romance ‘as refeições. É como em boates – eles recebem entretenimento junto com a bebida.”

Eu só olhei para as imagens grotescas e tentei pensar sobre o que ela disse. Finalmente, eu simplesmente resmunguei, “É doentio.” Marianne acenou vigorosamente, concordando.

“Dragão?”

“Sim, mas não existem agora.”

Minha boca despencou de surpresa. “Dragões existiram? Você está brincando.”

“Então, a criatura mítica está se recusando a acreditar em criaturas míticas?”

“Não, não é isso, eu só pensei que era estranho demais para ser real.”

“Não somos os únicos predadores por aí. Existem algumas criaturas que protegem humanos, e alguns apenas nos caçam–”

“Nos caçam? Dragões nos caçavam?”

“Sim, você vai me deixar terminar de explicar? Haviam vários tipos de protetores e caçadores. Nós caçamos humanos, então não é tão difícil acreditar que algo nos caçava. Por que você acha que dragões expiravam fogo. Agora, não sabemos se eles realmente nos comiam ou apenas nos matavam por diversão, pois ninguém sobreviveu para contar, mas os vampiros bem antigos na Europa trabalharam juntos para matá-los há cerca de mil e quatrocentos anos atrás. Alguns resistiram à era medieval, mas eles morreram ou então se esconderam. Gregorio viveu perto dos Volturi e sabe muito mais que eu sobre tais coisas. Os Volturi acreditam que alguns humanos podem até mudar de forma e tornarem-se fortes o suficiente para nos matar. O Grifo é uma criatura que é baseada na realidade. Os Volturi juram que mataram o último Grifo no começo do século doze.”

“Os Volturi mataram os que matavam?” Talvez eles não fossem tão malvados afinal.

“Ah, sim, os Volturi trabalham muito para proteger a nós e nosso estilo de vida. Gregorio estava esperando ser escolhido como um guarda ou guerreiro para o clã, mas ele não era forte o suficiente,” ela disse tristemente.

A idéia de alguém maior e mais mortal que Gregorio era difícil de compreender.

“A propósito, lobisomens são reais também,” ela disse com um sorriso por causa da minha cara chocada. “Eles são nosso pior inimigo, mas estão quase todos mortos agora. Os Volturi fizeram a erradicação dessa ameaça o objetivo deles e Gregorio diz que restam apenas um ou dois, mas eles podem fazer mais.”

“Lobisomens. Sensacional. Como os humanos sequer sobrevivem em nosso mundo?”

“Você não notou quão rápido eles procriam? Um casal de humanos pode fazer dez ou mais crias. É uma coisa boa que eles procriam tão rápido, de outra forma teríamos que começar a caçar veados,” disse Marianne, com o nariz torcido. Para ela, comer humanos até a extinção era melhor que um veado.

Decidi ler o livro em silêncio.

“Sua história é semelhante ao que Ivan e Chi-Yang encontraram também,” Paul disse enquanto nos sentávamos na sala de estar depois que contamos a ele sobre nossa noite. “Alguém está matando pessoas por toda a cidade e eles parecem ter mirado especialmente a Máfia, então deve ser também um clã de fato muito organizado.”

“Teve um ataque à máfia no século dezessete e, com certeza, foi um vampiro assassino. Aqueles homens foram mortos para começar uma guerra ou para nos enviar uma mensagem. Quem quer que o tenha feito nem se preocupou muito com a limpeza e deixou seu cheiro por todo o local,” Gregorio disse, enquanto entrava na sala.

Ele foi direto para onde Marianne estava. Eu nunca havia notado quão grande e impressionante ele era, até agora. Com a certeza de que um clã estava se mudando para a área, eu podia verdadeiramente apreciar a presença formidável dele.

“OK, então,” suspirou Paul, “vamos começar a treinar novamente e nos preparar. Parece que outra guerra de vampiros em Nova Iorque é inevitável.”

Senti uma sensação de pavor varrer meu ser. Eles lutariam para proteger o que era deles e eu estaria com eles. Tentei ver uma batalha, mas muitas decisões não estavam feitas. Eu não conseguia ver quando iríamos lutar.

Paul deve ter notado meu medo, pois tentou me assegurar. “Não se preocupe, Alice. Isso não é novo para nós, temos feito isso já por quase 100 anos.”

Marianne sorriu para mim, “Por que você não vem à missa conosco à meia-nite? Vai ajudar a acalmar seus medos.”

“Vocês vão à missa?” Arfei. Eu estava chocada demais para rir da ironia disso.

“Todo sábado à meia-noite,” Anette disse enquanto descia as escadas oferecendo uma echarpe preta para Marianne e para mim. “Éramos todos católicos, e amaldiçoados ou não, ainda fazemos o que podemos para alcançar o paraíso.”

“Ou pelo menos evitar o inferno,” adicionou Gregorio. “Tudo que precisamos é nos espremer parar colocar um pé no purgatório, e então o resto é só questão de tempo.” Ele sorriu largamente.

“Obrigada,” falei enquanto aceitava o tradicional véu, e perguntei-me como um vampiro, especialmente um do tamanho dele, poderia de alguma forma espremer-se para entrar no purgatório.

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