Solitário - Capítulo 01: Rotina

1849. Que ano mais sem graça. Não há para se nomear importante para àquele ano. Das inutilidades, apenas salvo a morte de um escritor chamado Edgard Allan Poe em 7 de outubro, apesar de nem ter sido tão comentada assim - papai me disse que muito dessas pessoas que trabalham pela arte não tem reconhecimento durante sua vida, isso deve ser mais chato ainda. Outro que morreu foi o Frédéric Chopin em 17 de outubro, dez dias depois do Poe e outro pelo qual nunca tive nenhum interesse em suas obras - ah, sim, ele era compositor, meu pai me disse que saiu até num jornal.

Mas como estava dizendo, 1849 foi um ano sem ter o que fazer, com exceção, é claro, de brincar no quintal gigantesco da fazenda do meu pai. Meu pai, que se chama Joseph, é um homem meio roliço – adoro apelidá-lo assim de vez em quando. Escutei a empregada chamando um frango disso uma vez e vi que ele era meio gordo, igual meu pai – e que tem um bom coração para com nossa família. Ele administra todos os nossos empregados, que apesar de tudo não eram muitos, mas que lhe davam muito trabalho - alguns deles fugiam de vez em quando.

Aliás, ouvi meus pais conversando uma noite sobre esse assunto; mas o que mais eu queria saber mesmo, era o porquê nossos empregados tinham a cor da pele diferente das nossas: eles eram mais escuros, e eu branquíssimo com colorações rosadas nas bochechas. Por que somos diferentes?

Ás vezes me pergunto de noite se é por que eles trabalham tanto no sol assim. Precisarei perguntar ao meu pai algum dia desses.

Me lembrei o nome dos empregados, meus pais os chamam de escravos de vez em quando. Temos umas mulheres que também trabalham dentro de casa fazendo o nosso almoço e jantar, limpando a sala, a cozinha, o meu quarto, do meu irmão, dos meus pais e todo o resto da casa. Eu não enxergo nem sequer uma linha brilhante se eu passo o dedo nos móveis - está vendo como a minha vida não é a das mais agitadas?

Meu pai Joe, como gostamos de chamar, não passa muito tempo comigo e meu irmão mais velho, o Bryan. Ele tem muito serviço e fica o dia todo fora de casa. Desse jeito até parece que eu sou o único desocupado por aqui. Mentira!

Meu irmão, que tem apenas seis anos, um ano a mais do que eu, também não tem nada para fazer geralmente. Ele é metido. Gosta de se exibir para as moças que iam para nossa casa lá na frente quando estavam umas amarradas às outras. Ele até é bonito: tem pele clara igual a minha, cabelos ondulados e cor de ouro, iguais aos meus. É meio magrinho e até bobo. Mas mesmo assim eu gosto de ficar perto dele, a falta de inteligência nele me faz sentir como se eu tivesse recebido o prêmio de ter herdado toda a inteligência do meu pai e da minha mãe, e tudo só para mim. É, parece que eu também gosto de ser o centro das atenções.

E gosto mesmo. Vivo ganhando do meu irmão nas nossas brincadeiras no quintal. A gente joga um pouco de futebol - a gente tenta. Eu tenho ainda a desculpa de ser jovem de mais nesses passatempos de adultos e senhores para ser bom o suficiente - mas, mesmo assim, ganho do Bryan. Ok, ele é uma pessoa muito adorável de se ter por perto. Gosto muito dele.

Se não fosse por ele, seríamos apenas papai, mamãe e eu. Minha mãe, Mary, é uma mulher muito bonita, da qual eu herdei incontáveis traços. Todos dizem que somos parecidíssimos, então eu apenas concordo - eu gosto de ser comparado à minha mãe. Ela tem os cabelos dourados mais sedosos e ondulados que já vi em toda minha vida - isso foi injusto, já que a maioria dos cabelos que vejo são enrolados ou bagunçados, mas ainda assim são os mais lindos. Sua pele clara me lembra a dos anjos que vejo quando vamos à missa aos sábados. É tão macia e rosada em alguns lugares. Suas sobrancelhas são delicadas e seus cílios volumosos. Como se ela fosse uma boneca. Seus olhos castanhos me lembram um pouco da terra em que moramos: não é um marrom escuro, mas um marrom com tons avermelhados - eu não sei se essa cor tem um nome -, marrom da terra em que temos a nossa fazenda.

Todos adoram ficar perto de mamãe, inclusive eu - não é só por causa das nossas aparências, eu juro! Ela me deixa - e deixa a todos - muito calmo, tranquilo. Sempre a pergunto como faz isso, e ela me responde ser apenas uma questão de hábito. Quando ela morava com o vovô, numa outra fazenda mais ao norte, ela convivia com seus irmãos que brigavam sempre, e ela tinha de acalmar toda a situação. Já ouvi tiros de armas, viu inocentes morrerem e até cuidou do ferimento de alguns.

A sua benevolência é infinita e, qualquer um que passe por algum tempo em sua presença, poderá perceber o quanto esta afirmação não é mentira. Quando meu pai e alguns dos empregados que trabalham para ele tem alguma discussão, minha mãe vai lá e acalma-os. Ela deve ter um dom divino.

Mary, minha mãe, resumindo, é uma senhora maravilhosa. Fica sempre comigo quando tenho medo de um som terrível. Parece ser de chicote, mas não perco tempo procurando saber qual a real fonte do barulho. Acho que sou medroso.

Mas ela nunca me deixa sozinho.

Mamãe também me ensina os bons modos perto das outras pessoas. Há poucos dias ela me disse qual era a diferença entre senhora e senhorita, e quando devo me direcionar às outras mulheres desse modo - ela diz que isso faz com que eu tenha um comportamento mais favorável quando eles forem me arranjar um casamento.

Casamento. Assunto que prefiro nem pensar. Afinal, quem casa, beija e faz filhos numa mulher. Como é que ninguém tem nojo de fazer isso? Como é que se faz isso, no ato? É tudo muito complicado para mim ainda. Preciso falar com alguém que entenda do assunto, talvez meu pai, afinal de contas meu irmão não deve saber de nada disso ainda – e de quaisquer outros assuntos.

Mas tirando esse assunto da lista de assuntos que eu gosto de falar, eu deveria ser mais cavalheiro e a agradecer por tudo o que mamãe já me fez. Ela é maravilhosa, faz muito por mim.

Às vezes acho que seria péssimo viver sozinho por aqui em Houston. Não tenho companhia, e quando a tenho, eu tenho medo de dizer alguma coisa de errado e essas pessoas irem embora e nunca mais voltarem a falar comigo. Eu não sei.

Parece que minha boca vai se movimentar de livre e espontânea vontade e nisso vou ofendê-las a qualquer momento. É estranha essa sensação de querer ter alguém por perto, mas ao mesmo tempo se vigiar para não cometer nenhum erro.
Minha vida é difícil, muito difícil assim.

Não tenho amigos, nem vizinhos próximos. Vivo numa solidão constante – mas isso é só quando o Bryan não fica comigo. Não vou à escola, tenho aulas aqui em casa mesmo com a irmã da minha mãe, a tia Berry, que é professora.

Meu pai diz que as escolas públicas continuam em péssimo estado desde a independência do Texas com o México em 1836, porque elas ensinavam pouco conteúdo com informações úteis para o nosso cotidiano, e algumas ainda teimavam em ensinar apenas em espanhol. Não que eu não saiba esse tipo de dialeto, afinal tia Berry é casada com o Juan, um hispânico que se mudou do México para o Texas há alguns anos buscando uma forma de vida melhor e sem sofrimentos.

De fato ele conseguiu. Conseguiu uma fazenda grande, muitas áreas para se plantar alguma coisa, muitos escravos para trabalhar na pouca lavoura e fazer os mais diversos serviços da casa.

Se me lembro bem, ele já havia me explicado uma vez que esse termo de hispânico só foi concedido a ele por ele ter vindo de outro país que tem como língua o Espanhol na América. Também me disse que, para muitos, a vida no México não é fácil, e que era preciso conhecer pessoas certas em ocasiões muito certas para se ter uma vida gloriosa. Ele diz isso porque não conhecia minha mãe ainda. Vai ver, se eles se conhecessem, ela poderia ajudar nisso com ele antes.

Eu estudava em casa então por escolha do meu pai. Ele dizia que não tinha dinheiro assim, em sobras. Os colégios eram caros e a mensalidade fugia ao alcance de muitas famílias. Nós não éramos pobres, mas também não conseguíamos ter tudo ainda – ainda, como meu pai sempre diz, e nem sei por que ele diz isso, ele nunca explica, odeio quando ninguém me explica os assuntos. Ele e minha mãe então concordaram em deixar que Berry me ensinasse algumas coisas que poderão me ser úteis algum dia, como matemática, física, ciências, filosofia, geografia, história, economia e agronomia.

Para ser sincero, eu não ligo para nenhuma destas matérias. Mas para que meu pai não tenha o desgosto de ter um filho sem conhecimento algum da realidade em que vive, eu procuro fazer alguns esforcinhos à medida que posso. Eu prefiro ver meu pai comer algumas frutas do próprio pé da fruta, como uma laranja que na verdade não é laranja por dentro, mas sim vermelha que se chama toronja, do que ter que estudar quanto tempo demora para um peso x chegar ao chão. Isso era inútil para mim. Para que meu pai queria que eu soubesse dessa coisa inútil? Que utilidade teria contas inúteis? Não entendo nada. Ainda.

O único ensino pelo qual me aproximei, e me apaixonei, foi História. Saber quem fez o quê e quais foram os motivos me deixam ansiosos. Gosto de saber que houve homens que lutaram e deram seu sangue para que países, e Estados como o Texas, sejam locais para que pessoas tenham condição e qualidade de vida melhor do que as que viviam anteriormente. Ser um país dependente de outro não deve ser nada primoroso. A dependência em si não é primorosa. O simples fato de ter que ser inferior à outra pessoa não é primoroso. Eu não gosto de ser inferior, por isso estudo para não ser inferior ao Bryan.

“Já chega Jasper” escutei a aveludada voz de mamãe em minha porta. “Já é tarde. Amanhã você terá de me acompanhar numa visita de celebração de Ano Novo com a vovó Edimary e o vovô Johnny.”

Sim. Amanhã será um longo dia. Muito longo. A pior parte era fácil de descobrir: seria a sessão de tortura com os apertos e tapas nas bochechas na chegada. Depois, era preciso muita perspicácia para escapar de minhas tias e tios. O inferno dos infernos. O pesadelo dos pesadelos.

“Sim, mamãe. Não esqueci da celebração. Irei descansar agora mesmo” disse, me lamentando.

“Tudo bem meu filho. Durma bem. Até amanhã.”

“Obrigado. Até amanhã.”

Não. Eu não queria ir. Não quero. Não quero. Não quero! Mas vou ter de ir. O inferno dos infernos. O pesadelo dos pesadelos. E tudo em poucas horas, eu não aguentarei, é muito para um pobre jovem como eu. Gosto mais do escuro, do meu quarto. Aqui, é aqui que vou ficar. Por enquanto.

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