Solitário - Capítulo 02: Visita

“Buenos dias mi chiquito” me saudava minha avó Edimary – ela parecia feliz. Quem é que fica feliz quando se fica cada dia mais velho e enrugado. Mamãe odeia quando digo isso em voz alta. “Já faz tempo desde a última vez em que você veio me visitar. Sentiu saudades?”

Como responder a uma questão dessas? Como mentir? Bem, eu preferiria me expor assim o fazendo do que depois passar por apuros com minha mãe.

“Sim, sim, vovó Edimary” – ela gostava que a chamássemos com o nome inteiro, não metade como Edi ou só Mary, porque aí também se confundiria com o nome da minha mãe, “senti muita saudades da senhora. Pedi com muito carinho à minha mãe para que me trouxesse até a senhora numa data tão especial como o Ano Novo”.

Vovó não resiste a certos linguajares meus. Minhas expressões faciais também facilitam muito o carinho e orgulho que ela sente por mim.

“Mas que chico más especial...” Ela sempre se admira comigo, talvez seja a distância entre as nossas fazendas.

Não nos encontramos com frequência. Geralmente, nos vemos apenas em algumas datas comemorativas, tais como Natal e Ano Novo. Porém, este ano o Natal fora celebrado em nossa casa mesmo – acho que papai preferiu se sentir “em casa”.

“...Jasper? Querido?” Opa, distraído de novo. “O que mi chiquito ganhou de regallo? Foram úteis?” ela me perguntou.

Vovó sabe que gosto de selecionar os objetos e assuntos por utilidade. Seja agora no presente, ou num futuro – futuro, essa palavra me lembra de casamento, urgh!

“Ganhei uns brinquedos de madeira de tia Berry” que, por acaso, não me foram úteis, já tenho muitos, “e mais uns bonecos de guerra de papai” – esses sim foram úteis, e legais. Com eles tenho a possibilidade de montar táticas de guerra. Uau! É, esses são realmente úteis – só não sei para quê são úteis.

“Já brincou com todos eles?” vovó quis saber.

“Sim, mas o modo com que brinquei com todos foi igual.” Dúvida estampava seu rosto, melhor explicar detalhadamente. “Eu montei uma esquadrilha de jipes do exército que carregavam seus fortes e corajosos soldados para o campo de batalha. Eles iriam lutar até a rendição total do esquadrão inimigo ou até a morte”.

“Mas isso não é perigoso de mais, meu filho?” mamãe tentou argumentar.

“Com certeza, guerra não é o que queremos mais. Muitos já perderam a vida, e muitos delas eram vidas inocentes” vovó tentou argumentar junto da mamãe – não deu certo para mim.

Como assim? Elas não acham legal a guerra? Qual o problema delas com a glória de lutar por um bem maior, pela humanidade, por exemplo? Todo ser humano adoraria deixar este plano terrestre com a certeza de que sua morte não seria em vão, com a certeza de que teria milhares de pessoas lamentando a perda de uma pessoa tão forte e batalhadora. A imagem mais fixa na mente das pessoas seria a dos seus atos, seus feitos, se ele morreu então, seria tomado como mais importante ainda.

Se ocorresse pelo menos uma vez na minha vida a oportunidade de ser um soldado, eu não a perderia. Jamais deixaria de fazer algo pelo bem maior de uma população.

Mas eu conseguiria mudar a opinião de minha avó e mãe. Eu sempre consigo. Minhas feições angelicais e inocentes não são páreo para qualquer um. Preparei a minha melhor face, e a mais suave voz.

“As pessoas morrem lutando pelo que é melhor para suas vidas. Se elas escolhem morrer lutando por um ideal que poderá fazer com que eles tenham uma condição de vida mais favorável para suas famílias, seus descendentes, não cabe a nós impedir que a benevolência entrelaçada na personalidade de cada um floresça, e que elas façam o que cada um acha ser a sua melhor opção. Varia muito da oportunidade de cada um, mas a opção correta é sempre a que se identificar melhor com o padrão de vivência de cada ser humano. Vocês não concordam com isso?”

“Claro meu querido, concordamos plenamente com a sua opinião” ambas afirmaram. Mas... elas não pensavam totalmente o contrário poucos minutos atrás? Há! Eu estou ficando bom nisso. Muito bom!

Reconhecendo a batalha ganha, saí de perto das minhas senhoras antes que elas voltassem a discutir as vantagens e desvantagens de marcar seu nome da História. Eu estava na confortável sala de minha avó, mas preferi ainda assim relembrar do resto do território, quer dizer, da casa.

Percorri todos os longos corredores da casa. Eles tinham a coloração amarelada, de barro seco mesmo. Em algumas paredes havia quadros com pessoas fazendo coisas neles. Havia um deles, um pequeno, que havia uma menina com um lindo vestido branco e fitas em cetim azul marinho. Seu cabelo dourado caía em ondas em seus ombros, e ela parecia gostar de seu cabelo balançando daquele jeito. Ela estava brincando com uma boneca, que não parecia ser uma boneca, mas sim uma fruta com panos a sua volta. O quadro tinha várias cores: verde das gramas e das árvores, o marrom do tronco, o azul claro e límpido do céu. Era um quadro tão bonito de se observar – eu poderia passar todo o resto do dia olhando para ele.

Algo me intrigou. Aquela menina não me parecia tão indiferente assim. Será que eu a conhecia de algum lugar?

Os outros quadros não eram interessantes. Eles lutavam entre si para chamar a atenção aos transeuntes, mas nenhum emitia a quantia imensurável de felicidade e tranquilidade que aquele me passava.

“É bonito, né?” Era o vovô Johnny – Wow, nem percebi ele se aproximando de mim. “Esse é um quadro que um amigo e vizinho nosso nos presenteou há muito tempo. Você nem tinha nascido ainda.” Ok, não faz tanto tempo assim, eu tenho cinco anos, não é grande coisa.

“Ele tinha uma pequena fazendo de gados por aqui, mas a situação começou a piorar para sua infelicidade. Suas dívidas aumentaram monstruosamente. Sua família entrou em falência em pouco tempo. Mas isso só aconteceu por conta de uma real história de horror.” Opa, horror? Por que? Ele disse história?

“Vovô Johnny, será que você me contar esta história?” De novo a carinha de anjinho.

“Bom, quem resiste a uma carinha destas?” Vitória!!! “Mas não vou me responsabilizar se você não conseguir dormir depois, ok?”

Quem se importa com isso? Mamãe mora na mesma casa que eu. “Claro que não vovô. Eu adoro histórias, e já faz tempo que não vejo o senhor, portanto nada mais justo que o senhor me contar uma história bem marcante.”

Ele me afastou do radiante quadro com suas mãos em minhas costas, me conduzindo até o quintal de sua casa. Sentamos num banco velho de madeira, creio que sua coloração era para ser branca, mas ela estava marrom – de barro, provavelmente, suja. Estava fazendo um lindo dia ensolarado, talvez, mais tarde, eu fosse brincar com os girassóis.

Ele começou a falar – finalmente, pensei que ele iria demorar muito para começar. Se ele demorasse mais um pouco, talvez eu pensasse em pedir um chazinho para a vovó. Mas tudo deve ter um motivo, logicamente. Um senhor de idade assim como ele deve ter muitas histórias na cabeça, muito o que bisbilhotar, procurar por entre as suas memórias.

“Ok, ok. Bom, os Russ, nossos antigos vizinhos, eram boas pessoas. Eram trabalhadores, que não deixavam o cansaço influenciar no trabalho rural. O pai da família, Sr. Steve, era um pessoa muito ciumenta e orgulhosa de si, o suficiente para não permitir que sua filha, Brooke, conversasse com sua mãe, Mary.”

“Porque isso vovô?” A curiosidade martelando minha cabeça sem parar.

“Por que, simplesmente, nós tínhamos muitas cabeças de gado e cavalos a mais do que as que ele tinha. E, cá entre nós, sua mãe sempre foi muito mais graciosa e adorável de se ter por perto, por companhia.” Ok, que minha mãe é maravilhosa eu já sabia.

“Continuando, sua intolerância para com a realidade era imensa. Proibia sua filha Brooke de conversar com sua mãe. Sua mulher Elke, porém, não ligava para a amizade entre as duas. Muito pelo contrário, incentivava os encontros entre as duas.”

“E titia Berry? Ficava onde?”

“Depois de alguns dos serviços dentro de casa, como lavar as roupas das camas ou limpar o chão da casa, sua tia Berry ia conversar com seu tio Jim, que infelizmente já partiu deste mundo para um lugar melhor, e seus amigos perto dos currais embaixo das árvores. Ela era velha em comparação com as idades de Brooke e Mary para as conversas que ambas tinham. Como ela já estava noiva aos doze anos, preferia passar o resto de tempo que lhe sobrava para curtir os momentos em casa e conhecer melhor o mundo masculino.”

“Ela não gostava de passar tempo aprendendo essas coisas com a vovó?” perguntei, confuso.

“Havia vezes que elas não se entendiam muito bem...” vovô confessou.

“… E acredito que ainda não se entendam muito bem até hoje, né?” o interrompi. “Ela não vem hoje?”

“Creio que não. Há certos dias durante o mês em que a mulher se torna a mais fera selvagem da savana.”

Franzi minha testa para esta afirmação. Como as mulheres se tornam animais de uma hora para outra? Chega de dúvidas!

“Como assim se torna uma fera? Simplesmente se transforma em um animal feroz de repente?”

“Claro que não, mas não tenho motivo para lhe explicar estas coisas ainda. Você é muito pequeno e tem muito a aprender ainda sobre as mulheres.” Humm, deve ser mais uma daquelas expressões que minha mãe tanto fala. É como se falasse que “tal senhora é uma cobra”, se referindo a ela como se não fosse amiga de nenhuma outra pessoa.

“Mas uma coisa é certa, você pode passar uma vida toda tentando entender a razão de alguns comportamentos das mulheres, e então o que você ganhará será apenas uma pilha de desastres e derrotas. Veja pelo meu viver: tentei minha vida toda conversar com sua avó sobre o que acontece com o corpo feminino e entender, e a única coisa que ganhei foram palavras de baixíssimo calão e recusas. Não perca tempo. Cuide de sua vida primeiro!”

Ok, entendido o recado!

“Não pare a história vovô!!” o relembrei.

“Sim, sim. Então, sua mãe conversava com Brooke, e sua tia Berry com Jim e mais alguns de seus amigos de fazendas vizinhas. Os outros filhos do Sr. e Sra. Russ, Jamie, Jilly, Tim e Fergus...”

“Fergus era filho?” eu disse curioso.

“Sim, Fergus era um filho. Um ótimo filho, aliás. Era dedicado aos estudos e aos trabalhos que lhes deixavam por fazer. Não reclamava em recolher as fezes dos animais” – urgh, fezes... – “colhia os frutos que eles plantavam, os organizava numa caixa e os levava para a cidade para vendê-los.”

“E por que o senhor fala dele desse jeito?” Algo deve ter acontecido com ele para que vovô tenha dito tão bem dele assim dessa forma.

“Bom, todos acreditavam que ele era o mais feliz de toda a família, fazia todos os serviços de bom agrado, mas aconteceu que aquilo era apenas fachada. Ele foi ao centro de Houston vender algumas toranjas” - aquelas laranjas que dentro não são laranjas, são vermelhas - “e por alguma razão, ele brigou com os senhores daquela casa. Triste, pegou o dinheiro e rumou direto a um saloon, que é um lugar, um bar, apenas para adultos por oferecer bebidas fortes, jogos de azar e mulheres...”

“Eles vendiam as mulheres? Como as escravas?” perguntei, incrédulo.

“Não, claro que não. Elas vendiam seus corpo por algumas horas. Quando você for mais velho, talvez eu te leve lá para conhecer a anatomia feminina antes de seu casamento.” Casamento de novo? Até o senhor falando disso?? Fiz cara feia, não gostei do fim dessa conversinha.

“Nos saloons, muitos disputavam por charutos e bebidas oferecidas de graça. Às vezes as brigas começavam por essas besteiras e eram arrastadas para os locais mais amplos para os movimentos das brigas. Os próprios donos dos bares preferiam isso, assim seus móveis não eram quebrados, e eles não tinham prejuízos. Os duelos, como se chamam, ainda acontecem de vez em quando, e essa é uma das causas que muitas famílias preferem se manter em residência distante das cidades: quanto mais perto, mais problemas parecemos ter. Estes duelos acontecem mais no ápice de uma discussão e envolviam rivais muito próximos uns dos outros. Eles não usavam apenas revólveres, mas rifles e até facas. Qualquer arma naquela hora era útil”. Opa, se era útil, era bom! “Não importava quem era o mais rápido e qual o tipo de arma eles usavam, mas sim a pontaria que cada um tinha, afinal, se iriam duelar com armas de fogo, não importava nada você as ter em mãos se não sabia usá-las”.

Prestei mais atenção no final, já que as armas eram úteis, eu queria saber o por que. Conhecimento era importante nessas horas.

“E foi assim que Fergus morreu...” Nossa, já havia me esquecido do tal Fergus.

“Morreu por que não sabia mexer com as armas?”

“Não, morreu por não ter nenhuma e então utilizar um garrafa de vinho quebrada. Era um duelo injusto, mas quem é que diz que nestas horas há o justo? Quem dizia o que estava certo ou errado, justo ou injusto, era quem tinha o poder, ou seja, aquele que, ou tinha conhecimento maior sobre como usar as armas, ou então tinha capangas que faziam o trabalho para ele.” - Eu sabia que conhecimento era útil. - “A vida é injusta. Ele estava com a garrafa e o outro com um calibre 38. Ele não teve saída: o outro, além de ter sido bem mais rápido, teve uma ótima apontaria o acertando bem no peito, em cheio no coração.”

Ok, estou chocado. Que ingênuo que ele foi pegando a garrafa. Até eu sei que uma garrafa contra um revólver não é útil – bom, de utilidades eu entendo, pelo menos, eu acho.

“Seu pai ficou traumatizado com a morte de Fergus, seu tão amado e querido filho. Dois dias após a morte, Steve se suicidou com veneno para pragas, como ratos. Engoliu as pequenas bolinhas a seco, de uma vez por todas. Sua própria filha, a Brooke, aquela que conversava bastante com mãe” ele explicou por ter percebido a dúvida crescente em mim, “encontrou o corpo de seu pai caído num canto embaixo da mesa em que estavam acostumados a almoçar. Todos se afundaram num aspiral interminável de depressão. Nem tentaram sair de lá, daquela escuridão. Dois membros da família em uma semana, de uma só vez. Era muita coisa para uma família só.”

Comecei a me sentir mal por isso, não sabia que isso tinha acontecido. Era tanta tristeza para poucas pessoas. Gostaria de poder ter algo para se fazer, para amenizar a dor, mas se minha mãe ainda nem estava noiva, como é que eu poderia estar vivo?

Vovô não parou por aí.

“Eles não aguentaram. Todos desistiram dos frutos, dos animais, da fazenda. Até da vida. A atmosfera não era a das mais agradáveis.”

“O que vocês fizeram, então?”

“Procuramos os outros, tentamos dar apoio, mas eles recusaram. Brooke não falava mais com sua mãe, fazia de tudo para evitá-la, aliás. Os outros filhos nem saiam de casa. Elke, a Sra. Russ, só ficava sentada chorando na varanda de sua casa. Não tinha vontade de conversar, de olhar, de estar perto das pessoas. A companhia alheia a incomodava. Um mês depois, ela vendeu a casa e então nunca mais tivemos contato com ela. Não sabemos que finalidade teve sua tristeza.”

Ainda estava em choque. Eu pensava que coisas tristes nessa dimensão apenas aconteciam nas histórias escritas, nas ficções, em contos... mas, me ocorreu que o vovô veio me contar esta história apenas por conta daquele quadro colorido.

“E o quadro? Onde entra em toda esta história?” eu perguntei – a curiosidade voltando a tona.

“O quadro foi pintado pela Brooke, amiga de sua mãe. Ela só não levou consigo o quadro quando se casou por achar que esse quadro pertencia à essa realidade, a esse local.”

Continuei sem entender. Em partes. “Que realidade?”

“A menina que está no quadro é a sua mãe, melhor amiga de Brooke. Quem mais Brooke haveria de pintar para guardar para sempre na memória? A melhor amiga, é lógico.” Sim, claro, a pele clara, os cabelos dourados, como pude não perceber?

“Jasper? Filho?” uma voz me chamava de dentro da casa. Era mamãe, a reconheci.

“Sim mãe, estamos aqui, vovô e eu. Estávamos conversando sobre a história do...”

“da cor das paredes da nossa casa. Ele adora saber o motivo de todas as coisas, Mary, você sabe disto melhor do que qualquer um por aqui” vovô argumentou, me interrompendo. Percebi que era assunto delicado, talvez proibido já que ninguém tinha me contado nada antes. Melhor não comentar nada com mamãe...

“Tudo bem, é uma cor linda não? O amarelo me faz lembrar o sol... quente e aconchegante. Maravilhoso!” mamãe disse.

“Sim, sim filha. Mas... qual o motivo da sua preocupação por Jasper?” – sabe que até eu estava curioso por isso também...

“Vim o chamar para um chá e bolachas na cozinha” – oba, adoro o chá da vovó. Bolachas? Hum.... – “o senhor também está convidado papai. Aliás, convocado” mamãe brincou, adoro esse seu humor.

Levantamos e fomos casa adentro. O quintal foi ficando para trás a cada passo que dávamos. A única coisa que ficou para trás foi o quintal e o sol querido da minha mãe, a história ainda borbulhava em minha mente. Tanta raiva escondida... tanta tristeza tentando ser camuflada... se houvesse alguma coisa a ser feita ainda, um dia eu daria um jeito de fazer... um dia...

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