Solitário - Capítulo 10: Guerra

14 de abril de 1861

Fiquei vagando por anos intermináveis sem algo a que pensar. Eu não queria pensar, pois pensar me lembrava que eu estava vivo. E viver era algo que estava longe de meu alcance há muito tempo.

Desci as escadas da casa, e fui direto para a cozinha. Não olhei para os lados, não cumprimentei ninguém se no caminho havia pessoas. Apenas procurei por comida, algo comestível.

Peguei o primeiro pedaço de pão que vi, e subi de volta ao meu quarto. Nada fazia sentido. Nunca fez. Viver.

Sentei na beirada de minha cama, olhando pela janela.

Não sei o que eu via realmente, mas era sempre a mesma coisa. Terra. Plantas rasteiras, e algumas delas estavam secas. A pouca grama que estava secando. A cerca amarela da fazenda. A porteira branca enferrujada.

Sempre as mesmas situações no dia, sempre as mesmas pessoas. Sempre a mesma comida, o mesmo quarto, a mesma sala e cozinha. As mesmas cortinas, as mesmas janelas e portas. As mesmas trancas e vidros.

Nada muda por aqui.

Assim que acabei de tomar o meu café da manhã – o pão –, me vesti e desci para a sala.

Ainda descendo a escada, ouvi meus pais estavam conversando com um antigo escravo da fazendo, o Merryl. Ele estava acompanhado de dois novos escravos, jovens, aliás. Pelo que pude ouvir pelo meio da conversa em que cheguei, o mais baixo e com aparência mais jovem se chamava Peny, e o mais velho, e mais alto, era o Orlando.

Ambos iriam trabalhar aqui na fazenda junto de Merryl, o auxiliando com os cavalos e os bois.

“Está bem, então. Leve-os aos seus lugares. Os acomodem, por favor, Merryl” Joe disse, rigidamente. E então os três saíram da sala.

Passei ao lado dos três enquanto caminhava até o sofá perto de Joe. Enquanto chegava ao sofá, Mary me acompanhou com os olhos. Eu não gostava disso. E ela sabia disso. Dei-lhe apenas um olhar e ela desviou o seu olhar de mim, desconcertada.

Sentei ao lado de Joe. Ele apenas me olhava, então o olhei de volta e disse aos dois:

“Qual o problema com vocês dois?”

Joe respondeu primeiro, após a troca de olhar entre ele e Mary. “Filho, estamos preocupados com você. Você não faz nada o dia inteiro! Gostaria de fazer algo?”

“Não há nada a se fazer aqui, e nem em lugar algum...”

“Querido, sempre há algo a se fazer. Eu irei visitar a vovó hoje pela tarde. Não gostaria de me acompanhar?” Mary disse, tentando soar simpática.

“Não, não há o que fazer, não há nada o que eu queira fazer e pare de chamar Edimary de vovó. Eu não sou mais criança” eu disse, rude, mas não havia outra forma de repetir estas mesmas palavras todo dia. Eu estava cansado disto tudo.

Eu guardava remorso, remorso de tudo. Do meu passado.

“Jasper, já chega!” Joe começou a dizer. “Já faz tempo, esquece de tudo!”

“Como se isso fosse a coisa mais banal a se fazer, não!? Se você é cruel, ignorante e egoísta o suficiente para esquecer o seu passado, o problema é todo seu, não meu. Não venha me dar lições de moral, quando quem mais precisa é você!”

“Você já perdeu dois casamentos que papai lhe arranjou, meu querido. Você não se sente muito só? Você precisa de companhia.” Mary não estava errada, não pelo menos na parte da perda dos meus dois casamentos.

A primeira, Vania Hadler alegou que o mais pobre dos mendigos da face da Terra era mais feliz do que eu. A segunda, que era bonita e simpática – sim, eu havia gostado daquela menina –, Duffy Whitergrey, Joe fez questão de estragar tudo contando todo o meu passado, tudo o que eu passei quando meu irmão faleceu e o que eu fiz – ou deixei de fazer – depois.

“Eu apenas perdi o primeiro. O segundo é recente, e se vocês dois não se lembram, foi Joe quem estragou tudo. Ele me fez perder a esperança, mais uma vez. Eu estava gostando dela, e então você fala mais do que a tua própria língua poderia falar, e estraga tudo. Vá ao Joe falar de perca de casamentos, não comigo!”

“Desculpe, filho. Eu... eu sei que fiz tudo errado...”

“Sim, você fez... e é muito bom que você mantenha isso em sua mente, não me venha então com palpites e lições... eu só quero paz, ficar sem ter o que pensar, por que quando eu quero pensar ou fazer algo, você vem e estraga tudo.” Eu estava ficando bravo cada vez mais, eu precisava me acalmar.

Paz. É apenas isso o que eu busco, apesar de que, quanto mais eu a busco, mais eu a perco. E pedir paz não era muito, vendo tudo o que eu já precisei aguentar em minha vida, em meus dezesseis anos.

“Não preciso de companhia, Mary. Não preciso de ninguém.” E olhei para o que Joe estava segurando. Era um pedaço de papel: o jornal da região.

Mary não pode se segurar mais e começou a chorar. Ela estava triste, eu sentia isto dela. Joe estava neutro, até o momento em que viu Mary chorar.

“Jasper, você faz sua mãe chorar tanto. Por que você gosta de maltratá-la tanto assim?”

Ignorei ambos. Era sempre a mesma situação, as mesmas pessoas, os mesmos sentimentos.

Peguei o jornal que estava na mão de Joe – apenas o deslizando, já que ele estava enrolado e preso num barbante, a sua mão estava em cima do jornal e abaixo do papel, apenas a perna. Puxei o barbante e puxei para a lateral, de forma com que eu pudesse abri-lo sem ter que ir à cozinha pegar uma tesoura para cortar. Joe se levantou e foi se sentar ao lado de Mary.

Houston News, esse era o nome do jornal. Sem criatividade, sem novas informações como tudo ao meu redor.

A manchete, porém, estava diferente hoje. Anunciava: “Há dois dias, a guerra entre Norte e Sul se acentua exponencialmente”.

Havia uma guerra no país? Eu não sabia disto. Algo diferente estava acontecendo. Terminei de ler o pequeno texto da capa do jornal, e então busquei a matéria completa na última folha. Eu soube que as tropas confederadas atacaram tropas da União em Charleston.

A União era os Estados Unidos em si, pelo menos, grande maioria dos Estados estavam na União. Poucos estavam com a Confederação – apenas uma minoria do Sul, inclusive o Texas. Os confederados eram poucos, e estavam em desvantagem pelo fato de que o Norte era considerado a região mais industrializada, enquanto o Sul era conhecido pela agricultura. Mas, mesmo assim, eles estavam dispostos a lutar por sua causa.

Se absorvi bem o que ali estava sendo narrado, o Norte estava em vantagem econômica se comparado ao Sul. Era no Norte em que todos os imigrantes, que vinham para o país, iam se alojar. A economia em alta e constante, que criava consequentemente mais oportunidades de trabalhos, era a maior isca para os estrangeiros. Eles vinham procurar uma vida melhor.

O Sul não era assim. Ele dependia da boa venda de algodão e do comércio de exportações para a Europa, e isso sem contar que o Sul era extremamente escravista, ele defendia a escravidão como forma de mão-de-obra agrícola. Em outras palavras, estava havendo um choque de culturas (tanto comercial, quanto política e ética) dentro do país.

Como a maior parcela da população se encontrava no Norte, aconteceu que a Câmara de Representantes de cada Estado/Região tivesse muitas pessoas. Não havia equilíbrio, pois era mantido um número exato de Estados a favor e contra a escravidão. Isto já estava acontecendo há algum tempo, desde o começo da década de 60. Mas a admissão do Kansas em 61 à União como pró-abolicionista, abalou todo este processo, deste sistema.

O domínio dos Estados contra a escravidão no Congresso e a eleição de Abraham Lincoln (contra a escravidão também) em 1860, fez com que 11 Estados escravistas anunciassem a separação dos Estados Unidos. Assim foi fundado os Estados Confederados da América.

Soltei o jornal, que rolou pelas minhas coxas e caiu espalhado pelo chão. Olhei numa linha reta aos meus olhos, o corpo ereto. Percebi que Mary já havia parado de chorar, mas apenas por que Joe estava ao seu lado a consolando. Olhei para os dois. Eles me olharam de volta. Acho que eles esperavam que eu lhes dissesse algo. E eu disse.

“Vou para meu quarto.”

Mary tornou a se debulhar em lágrimas e soluços. Joe apenas me olhou pelo canto do olho quando passei por eles e tornei a subir as escadas.

Todos estavam cansados deste clima. E eu os aliviaria, então. Mary, Joe e Noah estavam cansados, com péssima aparência há muito tempo. Eu melhoraria toda a situação, faria algo em prol dos Whitlock.

Abri o guarda-roupa, tirei algumas roupas e as joguei em cima da cama. Debaixo da cama, procurei pela mala de linho velha. A abri e comecei a empurrar todas as roupas separadas. Empurrei do colchão os lençois, e então ergui o colchão. No canto esquerdo de meu travesseiro encontrei a caixa que continha todos os meus pertences mais preciosos: alguns documentos pessoais, e dinheiro.

Assim que a mala estava completa, sentei-me à mesa de meu quarto. Puxei uma folha de papel e, com pena e tinta em mãos, escrevi uma breve carta aos meus pais.

“O ar está pesado por aqui. Está difícil de respirar. Tudo aqui comprime meu pulmão. Não consigo respirar. Não consigo viver. Há barreiras na vida de qualquer um, e chegou a hora de eu mesmo vencer as minhas.

Não se preocupem. Vocês todos ficarão melhor sem mim por perto, eu descobri isso pelas ações de Joe ultimamente. Eu estarei bem. Estou apenas indo aonde meu coração me manda ir.

Irei fazer pelo qual sempre sonhei, não sei como, mas darei um jeito para que nada continue do modo angustiante que se encontra no momento. A brincadeira deixará de ser apenas uma brincadeira.

Está na hora de encarar a vida. Está na hora de encarar quem eu realmente sou, e não ficar aqui me escondendo.

Peço mil desculpas a todos pelo mal que causei. Desculpas por permitir que a tristeza circulasse livremente por esta casa, e fechar a porta para a felicidade. Estou saindo e deixando a porta aberta, a tristeza sairá comigo – é a mim que ela persegue – e a felicidade retornará ao lar.

Não se preocupem comigo! Estou indo para a Confederação.


Com amor,
Jasper Whitlock.”

Dobrei a carta e a deixei descansando sob a mesa. Esperei todos se recolherem em seus quartos, e quando todos já o haviam feito, peguei a carta e a mala. Desci as escadas o mais silenciosamente que eu pude descer. Fui à sala e depositei delicadamente a minha carta sob a mesa de centro. Dei apenas mais uma olhada na sala, e fui em direção a porta.

Saí e não fechei a porta, como prometido.

Não olhei para trás, eu não queria nenhuma recordação do que havia vivido até agora. Peguei a estrada que passava em frente da fazenda, e fui para onde ela me levasse, seja qualquer que fosse o destino.

2 comentários:

Deborah Kamen disse...

Tão fofinha essa fic. :-)

Maria B.S. disse...

muito fofa mesmo!

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