24 de janeiro de 1851
Senti a claridade entrando pelas enormes janelas do meu quarto. As cortinas não conseguiam barrar totalmente o quão claro estava o dia lá fora. Aparentava estar tarde já. Há quanto tempo eu estava dormindo? Eu estava cansado, todos estavam.
Me levantei e atravessei meu quarto em direção ao meu pequeno espelho. Assim que minha imagem refletiu o meu estado, me surpreendi. Eu estava pior do que realmente estava por dentro.
Meu cabelo estava anormal. Muito bagunçado, mas bonito – eu gostava disso de vez em quando. Quem não gostava era mamãe, ela dizia que quem deixava o cabelo desse jeito eram os cowboys do oeste.
Eu gostava deste nome, soava bem. Mas pelo que percebi, só soava bem, não representava bem – boa coisa pelo menos ninguém achava ser. Devia ser a roupa maltrapilha ou então as armas com que eles andavam sempre – sempre com eles e sempre carregadas.
Deu uns tapinhas no rosto para ver se eu acordava, ou se assim eu conseguiria espantar aquela preguiça que teimava em permanecer intacta em minha face. Eu tinha olheiras. Minha pele estava em péssimo estado.
Havia dias que não tinha uma noite tranquila. Todos aqui em casa estavam passando por péssimos dias. A tristeza se fez parceira da escuridão - ambos se instalaram aqui sem dia para sair.
O que tinha acontecido? Foi vovô Johnny, aquele que vivia me contando histórias quando nos encontrávamos. Ele gostava de me falar sobre o que fez em sua vida, de como a vovó era bonita quando jovem – ela odiava quando ele falava isso, ela sempre aparecia gritando: “Como assim? Não sou mais bonita então?” Vovó conseguia deixar vovô em maus bocados –, dos problemas que seus filhos (minha mãe e meus tios e tia) causavam a ele, e tudo mais.
Aconteceu que ele estava varrendo aquela varanda amarelinha desbotada da casa dele, quando houve uma briga de peões por lá – ou cowboys, como minha mãe falava. Eles trocaram vários tiros, nenhum atingiu o vovô, mas pelo que vovó contou, ele se assustou e começou a passar mal. Ela nem teve tempo de chamar um médico, alguém que pudesse a ajudar. Vovô caiu no chão duro, quase sem respirar. Ela tentou socorrer ele, mas não sabia o que fazer, então se enfiou no meio da briga entre os dois – vovó deve ser forte de mais, ou então muito magra porque não levou nenhum tiro – e pediu ajuda para os dois.
O mais incrível é que eles pararam de brigar para ajudar o vovô. Papai disse que pelo menos eles não vão pro inferno. Não entendi.
Eles foram correndo chamar um médico que morava numa fazendo ali perto, e voltaram logo, mas vovô já havia falecido. Era coisa de mais para uma família só. Há uma semana e meia titia Berry havia perdido seu primeiro filho, por que o médico disse que ele não era saudável, que era fraquinho de mais para continuar vivendo sob aquelas circunstâncias.
Tentando esquecer toda a história recente, chamei por Noah, uma de nossas empregadas. Alguns minutos ela chegou silenciosamente em meu quarto, bateu na porta e logo em seguida entrou.
“O senhor me chamou, pequeno Jasper?”
“Sim, gostaria que me trouxesse uma vasilha com água.” Tentei explicar, “gostaria de aparecer menos abatido, tirar essa coisa ruim de mim da minha cara.”
“Claro, meu senhor. Em poucos minutos voltarei com sua água e toalhas limpas.” Noah era a única empregada da qual eu me sentia próximo. Ela sempre fazia os meus gostos, seja lá por comida ou qualquer outra coisa de rotina.
Ela tinha as expressões diferentes das minhas. Ela era um pouco roliça e um tanto senhora já. Seus cabelos viviam presos, mas mesmo assim, minha percepção não falhava em perceber que eles eram cacheados – não de uma única forma, eles eram descompassados, meio arrepiados em partes. Eles pareciam ser grossos, e tinham uma cor bonita, prateada – tinha branco também, apesar de eu não gostar dessa cor na cabeça.
Sua pele era escura, seus redondos olhos castanhos eram mais escuros ainda. Seu nariz era engraçado, igual ao de todos os escravos, mas muito diferente do meu e da minha família. O meu era pequeno e arrebitado, o dela era meio achatadinho, como se um dia ela foi entrar num lugar e alguém fechou a porta na cara dela.
Mas ainda assim gostava muitíssimo dela. Ela chegava a ser minha segunda mãe, minha outra opção de maternidade. O que eu precisava, eu corria para ela, ela sempre tinha ou fazia para mim. Ao lado dela minha felicidade era plena e constante. Bonito isso, não!?
“Aqui está Jasper” Noah entrou pelo meu quarto fechando a porta ao passar com os pés, “a água está numa temperatura ótima. Do jeito que o senhor gosta, nem quente, nem fria de mais.” Eu adorava ela!!!
“Obrigado Noah.”
Corri para frente da pequena bacia de ferro onde estava aquela água me esperando. Aquela água estava me parecendo convidativa, apesar de ela apenas estar lá sem pensar ou querer nada. Devia ser apenas a minha vontade de acabar com o meu humor matinal – ou renovar o meu humor.
Lavei o meu rosto. Aquela sensação ruim aparentou ir embora conforme a água escorria pela minha pele. Pedi ajuda para que Noah me ajudasse a vestir. Ela pegou minhas roupas limpas e começou a me vestir. Uma por uma. Peça por peça.
Em poucos minutos eu estava limpo, vestido, de cabelo arrumado e morto de fome. Saí de meu quarto para que Noah pudesse o arrumar, e desci pela imensa escada, chegando na sala.
Perguntei à minha mãe, que estava tricotando sozinha, e ela me disse que já eram 8 horas. Não é tão tarde assim, apesar de que havia pessoas que acordavam muito mais cedo do que eu aqui em casa. Pessoas, que, aliás, pareciam nem dormir. Eles se recolhiam para seus quartos aproximadamente às 9 da noite, logo após que toda a louça estivesse lavada, seca e em seu devido local.
Fui para a sala em que almoçávamos para tomar meu café da manhã. A mesa do almoço estava completamente limpa e com a toalha de linho bordada com aquele vaso estranho de barro branco de minha mãe. Ele estava ao centro, e nele, alguns girassóis que trouxemos da casa de vovó Edimary.
“Por favor, me tragam algo para o café da manhã!” pedi a algumas empregadas que passavam por ali.
Cinco minutos depois, duas delas voltaram me trazendo leite tirado há pouco das vacas do meu pai, ovos batidos, um pouco de pão e mais algumas frutas. Elas me trouxeram ainda mel, que eu adoro.
Comecei a me servir, e percebi que o quão quieta estava nossa casa hoje. Mais do que ultimamente, devo ressaltar.
Noah voltou e a puxei para um cantinho para conversar com ela.
“O que há de errado com todo mundo? Onde estão todos?”
“Sua mãe está na sala tricotando um novo xale para si mesma. Estamos no meio do inverno, e cada vez mais o tempo tende a esfriar.” Concordei impaciente, dela eu já sabia. “Seu pai está cuidando do gado com mais dois homens, eles vieram para comprar algumas cabeças. Seu irmão... bom, ele disse que iria brincar, mas não sei onde.”
Curioso, ele sempre acordava junto comigo.
“Ele acordou faz tempo?”
“Não, acordou meia hora antes que o senhor. Se aprontou, tomou café e desceu dizendo que iria brincar, mas geralmente o escutamos brincando. Você sabe que tem vezes que ele se empolga e começa a falar em voz alta. Por enquanto, não ouvi nada. Ele deve estar longe, ou com seu pai.”
“Ok, obrigado. Acho que irei procurar ele.” E saí correndo por afora.
Procurei por todos os lados: pelo quintal, perto da horta, do jardim, fui até perto de onde papai estava. Nada!
Quando estava quase desistindo, resolvi o procurar perto do nosso antigo balanço da mangueira – era fácil encontrar as árvores por aqui, elas eram poucas. Ele nem estava se balançando, estava só parado, sendo levado pela força com que o vento soprava.
“Bryan, está tudo bem?”
“Sim, claro. Quer brincar?”
“Claro, do que? De pular corda?”
“Quer brincar de cowboy?”
Oh ow... cowboy? Isso não vai dar certo... que mamãe não saiba disso.
“Ok, desde que eu possa falar ou fizer tudo o que eu quiser... sem restrições” argumentei – ele nunca me deixa fazer o que eu quero.
“Ok, fechado. Mas você é um idiota, rapaz! Não faz certo, só fala asneiras!!” Hãn? “Não fique aí parado seu imbecil, vá buscar nossa Winchester e as balas... e trate denão pegar as balas erradas outra vez!!!”
Ah sim, percebi que ele já tinha encarnado o personagem. “Sim, claro. Mas, se o que você está vendo é real, pode ser que a mentira esteja se tornando a realidade.” Ele não entendeu nada.
“Como assim? Enlouqueceu?” ele perguntou, confuso.
“Você não tinha dito que eu era idiota e só falava asneiras? Você estava falando de si mesmo?” o provoquei.
“Claro que não, mas, continua aí vai... Estamos em território inimigo! Esses pássaros são nossos inimigos, assim como as vacas, as plantas, as árvores e todo o resto!” Ele disse isso passando a mão pela lateral da calça, como se estivesse preparando para pegar a arma.
“Mas, se tudo é inimigo aqui, então todo o resto da América também é? Pior, todo a Terra?” o interferi.
“Ah, claro que não, só é daqui mesmo. Bom, vamos para lá caçar algo para comer.”
Saímos andando com pose de poderosos. Com o peito estufado, cabeça erguida e braços separados do corpo, fomos correndo e pulando os pequenos morrinhos da mato no chão. Ventava hoje. Era um ventinho frio, cortando a pele, acabando com aquela sensação boa de conforto. Mesmo assim corremos.
O vento batia em meu, o deixando bagunçado. Eu gostava daquilo – aquele ar de selvagem, de cowboy mesmo.
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