Solitário - Capítulo 04: Cowboy, Nunca Mais!

Entramos batendo o pé no chão de madeira. Mamãe saiu correndo, gritando que seus filhos haviam se tornado rebeldes e vagabundos. Que morar naquela região estava nos fazendo mal, e que seria melhor se nós fossemos morar na zona urbana de Houston.

No começo de 1850 saiu no jornal uma notícia dizendo que havia cerca de 2.400 pessoas morando em Houston. Essa cidade então devia ser grande. Não deve ser legal morar numa cidade assim, ter vizinhos muito, mas muito mais perto de você e você nem ter um quintal ou terras para correr, ou vacas para assustar, ou galinhas para correr atrás, ou árvores para subir ou se balançar no balanço nelas. Tem tanta coisa para se fazer numa fazenda, e na cidade? O que se tem para fazer? Nada...

Deixando Houston de lado, continuamos a brincar, só que agora fora de casa – os gritos de mamãe estavam nos deixando surdos, malucos.

Descemos as escadas da entrada e corremos de novo para o nosso balanço.

“Eu estou com fome, sabe... minha barriga está roncando” meu irmão me disse.

“Você não tomou café da manhã, não? Você não tem vergonha?”

“Sim, tenho vergonha, mas tenho mais fome ainda.” Às vezes passo vergonha alheia com ele... aff... “Já sei... como sei que mamãe vai achar ruim saber que eu vou estar comendo de novo...”

“Ela vai dizer que você vai virar uma bola, um boi” o cortei, feliz com minha comparação.

“É, ela vai pirar, mas vamos fingir que estamos brigando por comida.”

“Brigar por comida?” Éca, pensei que eles brigavam por coisas melhores. “Não sei se é uma boa ideia... isso é nojento, e totalmente fora da realidade dos cowboys...” tentei argumentar.. eu brigaria por qualquer coisa, menos por comida.. para isso bastava apenas pedir um pouco, não brigar com armas...

“Mas nós não somos cowboys de verdade, então podemos inventar o que quisermos. Podemos brigar por isso!”

“Mas isso é nojento!”

“Mas é dessas coisas que os cowboys gostam... eles não são crianças, eles são adultos que se mantém vivos do melhor jeito que eles podem...”

Derrota.

“Ok, mas eu escolho qual será a comida.. e vai ser peixe.. e frito...” Nojo em sua cara, ele odiava peixe.. Caí no chão gargalhando pela sua cara.

“Peixe é nojento. Ele vive na água, mas fede... Eu tomo banho quase todos os dias e fico fedendo menos do que ele...” Isso era verdade, apesar de eu ser mais cheiroso do que ele. “E você já viu as empregadas preparem ele? O peixe? Elas raspam sua pele e arrancam uns negocinhos transparentes... parece que estão unhas...”

“Mas o gosto é bom frito, parece galinha...”

“Não, parece peixe... fedido e gosmento... Horrível!”

“Mas vai ser peixe...”

“Nãaaaaaaaaaaaaao...” ele começou a gritar – eu adoro ver essa cara de desesperado dele...

“Hmm... já estou até sentindo o cheiro dele fritinho...” o provoquei – sua cara de nojo construída numa careta... Adoro o Bryan, sempre me divirto tanto com ele. Ele é o único que me faz companhia, já que fico tão sozinho por conta dos estudos.

“Ok, mas pára de falar nesse bicho nojento, está bem?” ele me perguntou, ainda com nojo e uma careta.

“Em que bicho? No peixe? Relaxa.. peixe é um ótimo alimento, deve fazer bem para o nosso corpo como todos os outros animais.” Adoro provocá-lo...

Estávamos no meio de nossas conversas, ainda decidindo o que acompanharia nosso almoço imaginário quando um homem, de estatura mediana passou pela cerca de nossa fazenda. Ele não aparentava ser muito velho, nem tinha cabelo prateados, mas podia se notar o início deles perto das orelhas. Seu cabelo combinava exatamente com a coloração negra de seus olhos.

Ele não parecia ser perigoso – até vermos aquela arma lustrosa brilhando no cós de sua calça. Já tinha visto uma arma antes – a escondida na segunda gaveta do armário do quarto do papai –, mas aquela aparentava ser muito diferente: maior e mais potente, como se o tamanho influenciasse no poder que ela poderia exercer sob os pobres coitados que estivessem sendo ameaçados por ela.

Mas que perigo ela podia nos apresentar se ela estava dentro das calças do moço? A única coisa que estava correndo perigo, por enquanto, era os seus órgãos ali dentro. E, na minha opinião, ficar sem as suas “coisas” de urinar não deve ser uma coisa útil – só não me pergunte para o que é útil além de urinar, vovô havia me prometido uma vez me levar naqueles saloons para conhecer a “anatomia feminina”. Para quê? Essas coisas eu posso pedir para que titia Berry me traga um livro, eu já sei ler há tempos.

“Olá pequenos garotos.” O homem estava falando conosco? “Vocês estão sozinhos?”

Ok, não entre em pânico, comecei a gritar mentalmente. Eu sou um homem corajoso – sorri com essa combinação “homem corajoso”, por que acho que eu ainda não era nenhum dos dois...

“Não, moramos com nossos pais” meu irmão respondeu.

“Qual seu nome? E do baixinho mudo ao seu lado?” Opa, baixinho? Ainda.. Não gostei nada do baixinho, então fiz uma careta bem feia para ele saber que eu era – estava tentando ser – um “homem corajoso”.

“Meu nome é Br...”

“Por que você não nos diz o seu nome primeiro e o que o senhor quer por aqui?” interrompi meu irmão, mais uma vez – acho que estava gostando de ter atenção só para mim eventualmente.

Surpreso pela minha fala espontânea, o homem virou sua atenção para mim e falou. “Liam. Liam Marshall. Muito prazer em conhecê-los pequenos cavalheiros.”

Ele estendeu a mão para nos cumprimentar – acho que ele estava esperando que eu fosse apertá-la. Talvez eu devesse mesmo o fazer, já que eu estava dando uma de homem. Fiquei olhando para a sua mão estendida, esperando para receber alguma mão para apertar. Olhei para meu irmão. Onde ele estava? Ele estava aqui do meu lado, até agorinha de pouco.

Pois ele já estava cumprimentando o cowboy, o tal do Liam Marshall. Até que ele não parecia tão perigoso assim. Sua face se encheu de feições carinhosas e amigáveis. Talvez nem todo cowboy fosse vagabundo assim, malandro.

“Meu nome é Bryan, Bryan Whitlock” meu irmão se apresentou – ótimo, realmente ótimo. Espero que ele continue por aí. “E esse é meu irmão Jasper.” Vá plantar toranjas... ele não podia ter parado no Bryan?

Maravilha... agora ele estava estendendo a mão para mim também... olhei para sua mão mais uma vez. Ela estava seca, enrugada... não era como se fosse igual ao da mão do meu pai, que tinha uns calos e era meia amarela.

“Muito prazer baixinho” – baixinho é você, eu sou criança. “Não vai me cumprimentar?” Ainda essa! Ok, eu sou um “homem corajoso” – quanta mentira de uma só vez...

Nervoso, estendi minha mão e apertei a sua estendida. “Muito prazer cavalheiro. O que faz por essas regiões?” Subitamente, meu irmão se surpreendeu pela volta instantânea de minha voz.

“Estou apenas de passagem. Sou de Dallas, e estava viajando, conhecendo a paisagem por aqui.”

“A paisagem daqui não é muito diferente da de Dallas... aliás, a paisagem daqui do Sul é toda igual” tentei soar confiante, mas inocente – eu não queria ter um cowboy atrás de mim.

“É, eu bem que reparei...” Ele não pareceu chateado com o que eu disse, pelo contrário, pareceu gostar de mim. “Mas, me digam... vocês tem algo para mim comer? Sabe como é a vida de um forasteiro: sem cama para dormir, sem roupas limpas para vestir, sem comida farta para comer...”

“... Mas com muita bebida e mulheres.” Antes que eu pudesse me controlar, as palavras fluíram de minha boca – eu bem que disse que eu sempre estragava as coisas, falava coisas que não deveria dizer...

“Sim, com certeza meu pequeno rapaz. Mas... do que você entende disso pequeno? Hmmm...” ele fez cara de quem estivesse pensando, ele era um mal ator, “nada. Você não sabe nada disso e de nada mais além desse monte de madeira estancadas neste chão quase seco.”

Oh ow... eu disse que eu sempre falo o que não deveria.

“Você fica aqui brincando na fazendinha com seu irmão de balanço e ainda quer se fazer de poderoso? De homem?” Oh ow, oh ow... problema à vista. “Você ainda nem tem pelos no rosto. Como quer aparentar outra coisa que você não é? Você não é nada perto de mim...” Sim, problemas muito, mas muuuito grande...

Ele continuou, agora diminuindo seus níveis de nervosismo, sua raiva esvaindo aos poucos. “Vocês tem algo para me dar de comer?”

Me lembrei da minha discussão com meu irmão: peixe. “Pode ser peixe... hmm.. frito?” – meu irmão me olhando agora com careta...

“Claro, por que não... eu adoro peixe frito!!” ele me disse com cara de feliz, como se fosse um cão feliz por ter comida em seu pratinho...

Ri com minha associação a nossa brincadeira anterior, ri mais ainda com a minha comparação com os cachorros.

Outro problema: será que Noah tinha peixe para preparar para ele? Se só falando a verdade que ele gostava de mulheres e bebidas ele ficou bravo, imagina se ele souber que esse peixe frito é brincadeira minha e do meu irmão... Oh ow triplo...

Bryan olhou para mim e sussurrou em meu ouvido: “O que vai fazer, chamar mamãe?”

Eu não sabia o que fazer agora. “Parabéns, você nos pôs numa maravilhosa encrenca!”

“Foi você quem veio falar com ele, não eu!”

“Mas foi você quem ofereceu”

“Eu só estava tendo uma conversa civilizada!”

“E quem disse que ele é muito civilizado? Ele ficou bravo!”

“Mas ele não tirou a arma e nos fez virar peneira...”

“Desculpa interromper os senhores aí, mas vocês vão me trazer o maldito p...”

Como se um anjo estivesse descendo do céu para nos ajudar, um senhor de aparência roliça apareceu gritando. Ele estava bêbado? Não sei... ele estava com a cara amarrada – modo de dizer, é claro –, suas pernas estavam entrando uma a frente da outra, sua roupa estava suja e rasgada...

O senhor, descabelado, gritou para o cowboy da nossa frente, o tal do Liam Marshall. “Você acha que iria escapar de mim por muito tempo seu vagabundo...” Agora sim a situação estava feia para nós.

Liam apenas o olhou incrédulo – eles pareciam se conhecer.

“Mas olha só quem apareceu por aqui? Conseguiu sair da cela, Bob Waite? Qual o gosto da comida estragada da prisão? Como é dormir no colchão duro em meio aos ratos?” Liam começou a provocá-lo, acho naquela hora, não era uma boa ideia fazer aquilo...

“Saí sim, e sobrevivi, ao contrário de você que vive dormindo no chão e pedindo comida aos outros, aos inocentes.” Ixi... a situação não está melhorando... “Você estava fazendo o quê por aqui? Não vai me dizer que você vai se aproveitar e roubar esses pobres moleques, não é!?”

Oh ow... não gostei de ouvir isso... Uma mentira? Esse é uma hora perfeita...

Me virei para o Bryan, que estava mais pálido do que eu, e falei sussurrando.

“Vou mentir, vamos embora...”

“Mas o que você vai dizer? Olhe para eles brigando... dependendo do que você dizer, nós vamos servir colchão, de peneira, na pior das hipóteses...”

Hummm... ok, já sei. Preparei minha carinha mais dócil e inocente, minha voz mais angelical que podia. “Já voltamos em um minuto” isso não foi muito bom, “aliás, alguém mais quer fazer xixi?” Ok, foi a única saída que veio à minha cabeça, é tonta, mas espero dar certo...

“Essa desculpa é muito idiota, fútil... não vai dar certo” meu irmão me sussurrou de volta.

“Brilhante o suficiente para te enganar, Bryan” lhe respondi – brincadeiras a parte.

Inconscientemente, ouvi fortes baques perto de mim. A minha única reação foi me abaixar com as mãos sob a cabeça. Logo após o ocorrido, analisei o meu corpo batendo com as mãos: nada faltando, nem uma única gota de sangue derramado.

“Não se importe conosco moleque... eu tenho uma dívida a cobrar deste muambeiro... vá fazer o que tem que fazer e não me apareça mais” o outro cowboy disse, aquele que era mais grande, entre um estouro forte e outro.

“Muito obrigado Sr...” procurei pela minha mente seu nome, já havia esquecido, “Sr. Waite. Tenha um... excelente dia” se é que podemos chamar de “excelente” um dia com brigas entre dois peões armados...

“Não agradeça, da próxima vez, vocês dois não se salvam... e é bom saírem de perto antes que sobre tiros o suficiente para vocês.” Não era preciso nem terminar de falar que nós já íamos sair correndo mesmo.

Maravilhoso. Olhei para meu irmão, abaixado ao meu lado, e disse: “Vamos agora?”

“Há. Idiota. Corre!!!”

E corremos o máximo que pudemos, sem sentir saudade alguma de suas vozes - para ser sincero, de suas armas brilhantes. Minhas pernas quase pareceram estar anestesiadas – eu, basicamente, nem as sentia. Pulamos por todos os relevos do terreno, fosse ele um morro de terra ou um buraco.

Minutos depois, chegamos na escada de nossa casa e a subimos sem desacelerar. Abrimos as portas quase nos trombando, percorremos toda a sala e subimos para o meu quarto, lá no fim do corredor do piso superior. Entramos e sentamos em minha casa, quase sufocados com o nosso próprio pulmão, hiperventilando, e ainda sem acreditar no que acabamos de passar.

“Você corre feito uma menina...” meu irmão me disse, ofegante, tentando respirar... “e isso foi...”

“Eu sei, eu sei, isso foi muito perigoso e muito estúpido. E você é o rei molenga dos travesseiros!” Dúvida perpassando em sua cara. Simples... peguei meu travesseiro e lhe dei uma travesseirada. Ele rolou para o outro lado da cama. Bryan pegou outro travesseiro, nos levantamos e começamos a brincar de guerra de travesseiro. Era um travesseiro contra o outro, até que penas de gansos começaram a voar para todos os lados. Havia pena em tudo: na cama, no chão, dentro do meu colete, em meu cabelo, grudado em minha boca, menos dentro do travesseiro. Havia mais fora do que dentro...

Noah bateu na porta e, apesar de assustada com a nossa guerra recente, delicadamente nos disse que era para irmos para o banheiro, pois elas já estavam preparando água morna e sabão para nosso banho. Ela nos disse ainda que teríamos que ir para Houston – para a cidade, para o centro comercial, – porque precisávamos comprar mais cereais para nos alimentar.

Meu irmão não queria ir tomar banho, eu aceitei normalmente. Saí, tentando levar o mínimo possível de penas pelo resto da casa.

“Ok, Bryan, você pode não tomar banho agora, mas vai chegar uma hora em que você vai ter que tomar banho!”

Ele apenas acenou com a cabeça, seus olhos nos meus olhos, tentando parecer confiante – em vão. Se eu não estivesse cansado, até o compararia infinitivamente com porcos vivendo no chiqueiro.

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