Solitário - Capítulo 06: Alho

Corri para a cozinha. Procurei por Noah em desespero, já que eu tinha de dar um jeito de ficar com febre, eu não queria que mamãe descobrisse que eu não estava doente. Ela ficaria profundamente chateada comigo – vovó então ficaria mais chateada ainda.

Passei pela grande mesa de madeira escura e pelas cadeiras sem estofado – as da cozinha não tinham revestimentos, a da sala de jantar tinham seus assentos revestidos com um pano verde claro e alguns bordados à mão. Contornei a bancada de mármore e vi Noah agachada ao chão, procurando algo entre as panelas num pequeno armário embaixo da pia.

Me aproximei dela com rapidez – não silenciosamente, para não assustá-la –, o máximo que pude, e então lhe perguntei:

“Noah, você se lembra de quando você me contou sobre seus amigos de infância? Quando você ainda morava na África?”

“Te contei?”

“Sim, claro Noah! Não se lembra?”

“Hmm... ok. Posso saber o motivo desta história em especial?”

“E você por acaso, apenas por acaso, se lembra daquela parte da história de que um menino havia esfregado algo no sapato?” Calma, muita calma, eu já estava chegando no ponto principal da minha busca.

“Ora, menino Jasper, o que está aprontando desta vez?” Noah perguntou, desconfiada.

“Nada... eu só gostaria de saber... apenas por acaso mesmo. Você se lembra?” a pressionei.

“Sim, me lembro. Mas por que me pergunta justamente desta história?”

“Por nada, apenas curiosidade. Na verdade, eu gostaria apenas de lembrar o que exatamente ele havia passado... o menino.”

“Bom, não é importante o que ele passou ou deixou de passar, não!? Já faz tanto tempo!”

“Você não se lembra? Xiii... acho que a senhora está fic...” – toquei em assuntos delicados, com firmeza e as palavras (ou rostinho e voz) certas, eu saberia ganhar esta batalha...

“Opa menino, não estou ficou doente da cabeça, não viu, se era isso o que senhor iria me dizer. Eu me lembro muito bem o que ele fez...” – isso, mais um pouquinho, quase lá... Mas então ela parou, um pouco ofendida ainda.

“Noah, me desculpe, eu não quis ofendê-la” – carinha de inocente, ela não resiste a esta.

“Oh meu querido, tudo bem. Já passou.” Só? E o resto da história? E o que o infeliz do menino passou no infeliz de seu pé?

“Hmm... bom, se já passou” ela me olhou com os cantos dos olhos e uma sobrancelha erguida, desconfiada, “eu gostaria de saber o que ele passou nos pés. Você poderia me contar?” – mais uma face angelical.

“Sabe, estou preocupada por você, pequeno Jasper. Sua mãe acabou de pedir para que José fosse buscar por auxílio com o médico da região, e você está aqui me pedindo este tipo de coisas?” – mentira, ela não estava preocupada. Não muito.

“Ok, vou falar a verdade.” Seu rosto se iluminou neste momento, ela não gostava quando eu mentia ou escondia coisas para mamãe ou para ela. “Resumindo numa curta e rápida história, eu e Bryan queríamos brincar, mas mamãe veio a nós dizendo que iríamos à casa de vovó, e lá não conseguimos brincar por que ela sempre aperta demais as minhas bochechas.”

“Mas isso é muito feio, meu pequeno. Sua avó Edimary é uma ótima e benevolente mulher, e ela ainda anda muito só por conta do seu falecido, seu avô.” Ouvindo isso pelos lábios de Noah, a situação me parecia muito feia mesmo, mas eu não fiz por mal, apenas queria brincar um pouco – o que, digamos a verdade agora, é o que toda criança deveria fazer. Nem todos tem essa possibilidade, de brincar, mas eu tenho, e não quero desperdiçá-la.

“Sim, é feio, mas não fiz pensando pelo lado negativo do acontecimento. Eu apenas gostaria de brincar um pouco com meu irmão hoje. Hoje é um dia especial: ele estava me deixando ser o general do nosso exército, e isso por que falta apenas uma semana para o meu aniversário.” Ela ainda me olhava de um modo estranho. “E não é todo dia que falta uma semana exata para seu aniversário. A próxima vez que isso acontecer vai ser apenas daqui a um ano.” Ela começou a rir do que eu estava falando, afinal de contas, ela adora quando eu falo desse jeito sério dessas coisas sérias, dos meus afazeres sérios. “E um ano é muito tempo. Você sabe quanto tempo é, Noah?”

“Bom, meu senhor...” – ela ainda estava rindo aquele pequeno sorriso, aquele de apenas os contos dos lábios puxados e uma leve fechadinha dos olhos, por que suas bochechas subiram um pouquinho.

Ainda sério, e até um pouco bravo, continuei.

“São 360 e alguns dias. São muitos dias... e isso tudo por que eu nem contei quantos são as horas, os minutos de todos esses dias.” Vitória!!! Ela estava sorrindo completamente agora, totalmente derrotada com o meu inocente argumento.

“Tudo bem, meu caro Jasper. Mas me diga antes, o que você disse à sua mãe para que pudessem ficar em casa para brincar?” Noah quis saber.

“Eu estava muito feliz, uma felicidade que mal cabia em meu peito, então logo lhe disse estar com febre.” Ela revirou os olhos com minhas palavras. “E Bryan está com dor de barriga, ou na região aqui da barriga” e lhe mostrei com minhas mãos aparentemente onde ele estava fingindo estar com dor.

“Vocês são impossíveis, sabiam?” Ela não estava brava, estava rindo. “Sua mãe estava preocupada, pediu até para que o doutor viesse ver vocês. Vocês sabem atuar muito bem, então!”

“Não desconfie de nossas habilidades, Noah. Somos ótimos em algumas mentiras. Não se preocupe!” Noah adorava me ver no comando assim, acho que ela se sentia orgulhosa de mim. Não sei por que! “Mas, você vai me contar o que o menino lá esfregou no sapato ou não? Precisamos de sua ajuda!”

“Ele havia esfregado alho na sola de seu calçado, um chinelo de borracha, para ser sincera.”

“Ele ficou doente? Ficou com febre? Me conte!!!” – eu já estava me desesperando, eu não gostava de visitas do doutor, ele parecia um bruxo muito, muito malvado.

“Sim, ele ficou com febre em alguns minutos. Uma febre não muito alta, e que não se instalou por muito tempo, apenas o suficiente para ter licença do trabalho para ir para casa.” Ótimo, perfeito! “Tem certeza que lhe contei isso?”

“Claro, Noah! Eu não me esqueço de nada do que você me diz” – não acrescente ‘e o que diz aos outros também’. “Hmm... você tem, apor acaso, alho?”

“Sim, eu tenho. Está lá atrás da porta, é como se fosse um talismã dentro de casa, a protege contra maus agouros, más espíritos... Sente-se aí naquela cadeira que eu já volto com algumas cabeças de alho.” Perfeito, tenho Noah do meu lado me apoiando – como se ela nunca te apoiasse, não! – e tenho o alho, finalmente! Sim, ter alho seria extremamente útil em minha situação.

Ela se levantou do chão e atravessou a cozinha. Ela chegou à porta, a fechou, e vi ela retirar um grande e desleixado cordão de bolas brancas que estavam amarradas numa outra grossa corda. Assim que ela aproximou aquelas bolas de mim, pude perceber que elas eram compostas por pequenos gomos brancos, era como se fossem pequenas abóboras brancas, mas que cheiravam muito mal.

Ela começou a desmanchar a bola, o alho – o que ela disse, mesmo? Cabeça do alho? Éca, o alho tem cabeça? Cada gominho que caía, ela tirava uma delicada e fina pele. Eles realmente cheiravam mal. Eles cheiravam como... como... como alho. Decidi que não gosto de alho.

“Noah, posso lhe fazer uma pergunta? Não precisa responder, se você não quiser...” Era importante lhe deixar óbvio que ela tinha essa alternativa de não responder, visto que a pergunta não era grande coisa.

“Claro, querido. É claro que pode perguntar o que quiser.”

“Se o alho tem cabeça, ele tem corpo? Ele está morto? Por que isso não deve ajudar a afastar os ‘maus agouros’, muito pelo contrário, isso” enfatizei muito bem a palavra ‘isso’ para ela entender a minha repulsa pelo alho – “deve atrair essas coisas más.”

Instantaneamente ela começou a rir, seu rosto num grande e adorável sorriso.

Entre uma gargalhada e outra ela conseguiu falar.

“Não, meu querido, o alho não tem corpo, nem está morto, mas serve sim para espantar os maus agouros. E não se preocupe com esses rituais, é ritual antigo, minha mãe me passou este ritual quando eu ainda era pequena. Ela sempre disse dar certo, não sei se realmente dava, mas nunca experimentei deixar a casa sem. Sempre preferi deixar segura com o alho, dando certo ou não.”

Ok, então. Ritual antigo. Isso é coisa de louco, mas vou fazer de conta que não sei de nada.

Após ter repetido este método estranho de tirar as peles de cada alho, ela os juntou e guardou enrolados em seu avental. E andou olhando para mim, sussurrando:

“Jasper, vem, vamos para seu quarto. Lhe pegarei uma meia de linho para vestir. Dentro delas eu vou pôr este alho.” Não tinha só que esfregar? Desse modo meu pé vai ficar negro de tão podre com este cheiro.

Subimos as escadas e entramos em meu quarto. Ela puxou os lençois de minha cama, fazendo sinal para que eu me deitasse nela confortavelmente – de um modo doente, lógico, eu não poderia me esquecer deste detalhe.

Ela pegou um par de meias e pôs alguns daqueles pálidos gominhos em cada pé de meia, e logo me vestiu com elas. Era estranho estar com meias e sentir aquelas pedrinhas em meus pés. Acho que é como papai disse uma vez de um capataz: ‘Você me é útil, rapaz, mas é uma pedra em meus pés.’ Neste momento eu compreendia muito bem este sentimento.

“Fique aqui, deitado, e não se levante. Ficar assim será o suficiente para que sua temperatura corporal suba de pouco em pouco. Não se preocupe com nada, apenas com a sua atuação. Faça tudo muito bem, caso contrário, seremos dois perdidos, tudo bem!?” Noah me alertou – eu adorava este sentimento maternal, protecionista dela.

“Eu já lhe disse, Noah, não desconfie das minhas habilidades, ok?” afirmei.

“Ok. O senhor precisa de mais alguma coisa?” ela me perguntou, ajeitando os lençois em torno do meu corpo.

“Água morna, quente, talvez. Para passar um pouco na testa, assim que o doutor chegar” expliquei vendo dúvida em sua face. “E me avise quando o doutor estiver chegando, por favor!”

“Sim, claro, querido Jasper.”

Noah mal saiu de meu quarto, e já voltou com uma pequena bacia e um pedaço de pano dobrado em suas mãos. Ela vinha nervosa, agitada. Pôs a bacia na pequena mesa ao lado de minha cama, embebeu o pano na água e começou a passar rapidamente por minha testa e bochechas.

“O que houve?” perguntei.

“O doutor. Já está chegando, pude vê-lo passando pelo portão da fazenda pela janela da cozinha. Assim que terminar, jogarei esta água fora, ou esconderei em baixo de sua cama, ou outro lugar para que ninguém encontre!”

Noah estava nervosa, eu sentia isso. Eu tinha de fazer algo para acalmá-la, eu tinha o dever disto. Afinal, eu era o responsável por toda esta situação. E se ela encontrasse problemas, seria eu o responsável por tudo, e eu nunca me perdoaria se ela fosse embora de casa por minha culpa, minha causa.

“Tudo bem, Noah, não se preocupe! Está tudo bem! Tudo dará certo e nada sairá do planejado. Apenas esconda isso o quanto antes e, por favor, vá ao quarto de meu irmão avisá-lo que o doutor está chegando, assim ele terá tempo para se preparar e fingir a dor sem que a verdade venha à tona, ok?” Noah pareceu se acalmar quando viu que, mesmo de cama, eu ainda estava no comando de toda a cena – eu estava no comando, como na nossa brincadeira de guerrinha.

“Ok, tudo bem. Já irei para avisá-lo.” E assim que disse isto, Noah pegou a bacia e jogou a água fora pela janela, e escondeu a bacia embaixo de minha cama. Ninguém iria vê-la ali embaixo, os lençois eram compridos o bastante para arrastar no chão e cobrir todo o vão entre o colchão e o assoalho. Ela me deu um beijinho na testa, e saiu, fechando a porta logo após sua saída. Escutei seus passos até o quarto ao lado do meu, a porta se abriu, ouvi alguns sussurros, e então logo a porta se fechou novamente.

Mais passos e sussurros, não de Noah desta vez, mas de mamãe e o doutor. O doutor Nicholas Fields.

Alguns minutos se passaram desde que ele entrou no quarto ao lado do meu, o quarto de Bryan. A porta se abriu e se fechou novamente. Agora os passos recomeçaram, e pareciam vir de encontro ao meu quarto. Ok, eu estou doente, e com febre, muita, muita febre!

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