Como se tivesse acabado de acontecer, a lembrança do momento em que eu me dei conta do que Bella poderia significar para mim invadiu minha mente. Minhas entranhas se contorceram num gesto de amargura e nojo de mim mesmo.
“Bella Swan caminhou para o fluxo de ar quente do aquecedor que soprava na minha direção.
O cheiro dela me atingiu como uma bola, como um bastão de jogo. Não há nenhuma imagem violenta o suficiente para encapsular a força do que aconteceu comigo naquele momento.
Naquele instante, eu não era nada nem perto do humano que um dia eu fui, nenhum traço da humanidade na qual eu estive tentando me esconder.
Eu era um predador. E ela era a minha presa. Não havia nada mais nesse mundo além dessa verdade.
Não havia uma sala lotada de testemunhas – na minha cabeça eles já eram uma avaria colateral. O mistério dos pensamentos dela estava esquecido. Os pensamentos dela não significavam nada, ela não iria passar muito mais tempo pensando.
Eu era um vampiro e ela era o sangue mais doce que eu havia cheirado em oitenta anos.
Eu nunca imaginei que um cheiro assim pudesse existir. Se eu soubesse que existia, eu já teria saído procurando há muito tempo. Eu teria vasculhado o planeta por ela. Eu podia imaginar o sabor…
A sede queimou a minha garganta como fogo. Minha boca estava torrada e desidratada. O fluxo fresco de veneno não fez nada para dissipar essa sensação. Meu estômago revirou com a fome que era um eco da sede. Meus músculos se contraíam e descontraíam.
Nem um segundo havia se passado. Ela ainda estava andando no mesmo passo que a havia colocado no vento em minha direção.”
- Já está pronto? - Alice me chamou da porta. Retirei os fones de ouvido e fiz um aceno para que entrasse. - Desculpa, é que eu ainda tenho medo de que você faça algo imprudente consigo mesmo de novo.
Ela indicou com a cabeça as cicatrizes que iam desde minhas mãos até o topo dos meus ombros, feitas pelos meus parentes tentando me segurar, para que eu não tentasse acabar com meu sofrimento. Teria conseguido se não fosse por eles e tentaria de novo se tivesse uma oportunidade. Chagava-me todos os dias por tê-la abandonado, mas o fato de ela ter sido “feliz” era o que fazia meus ossos se conectarem novamente, e que minha pele cicatrizasse. A última vez que me lembrei dela e comecei a destruir tudo à minha volta foi quando Esme teve de explicar à polícia o motivo de tanto barulho, os vizinhos os chamaram; morávamos a mais de dez quilômetros de qualquer ser humano desde então.
Sinto falta dela, Alice pensou alto, me tirando das memórias. A pequena era apenas uma sombra da fada saltitante que costumava ser. Parecia mais um personagem de filmes de terror; se ela estava daquele jeito, nunca mais me atreveria a olhar no espelho. Tinha vergonha de mim mesmo, não aguentaria olhar o reflexo do monstro que causou o sofrimento de todo o Clã Cullen.
Sentei-me no sofá com uma careta e Alice veio se sentar ao meu lado. - Sei que nossa animação não é a das melhores - valeu mesmo, Jasper. - mas ficaria complicado para nós se você fosse o único adolescente da família a não ir para a escola.
- Não me preocupo mais, sabe disso - minha voz saiu rouca, fazia tempo que eu não a usava.
- Já fazem mais de doze anos. Vejo você saindo daqui em todos os aniversários dela, todos os anos será a mesma coisa. Sei que não dá pra esconder, acredite, te compreendo mais do que pensa, não dá para esquecer as lembranças que temos dela. Mas por favor, não se atenha apenas na morte, há lembranças boas também, você só não quer enxergá-las porque está imerso na culpa.
Mesmo apreciando o que ela me dizia, sinceramente não queria escutar. - Eu vou para a escola hoje, não é o suficiente?
Alice balançou a cabeça penosamente. Sem dizer mais nada, levantou-se e saiu do meu quarto, fechando a porta silenciosamente ao passar. Instantaneamente eu estava deitado sobre o tapete ao chão de novo, voltando os fones no ouvido. Fechei os olhos e liberei minha mente, desligando os pensamentos dos meus familiares, tão preocupados comigo.
Respirei fundo e a memória do aroma floral de Bella invadiu minhas narinas, fazendo com que as imagens que eu tinha dela, a sensação de sua pele quente, a corrente elétrica que invadia meu corpo na presença dela, tudo, estava ali, vívido, como se tivesse acabado de acontecer. Como sempre gostaria.
“Quando me vi
Tendo de viver
Comigo apenas
E com o mundo
Você me veio
Como um sonho bom
E me assustei
Não sou perfeito
Eu não esqueço”
- Argh - murmurrei, abrindo os olhos. 7:57, que ótimo momento para sair de devaneios. Já estava mais do que no horário de levar meus irmãos. Entrávamos às 8:00. Se fosse por eles, não dependiam de mim, mas tinham medo que eu pudesse fazer se estivesse completamente sozinho: o que eu desejo há doze anos atrás.
Não é só porque chegaremos adiantados que você precisa andar que nem uma lesma! Os maus hábitos de Rose só pioraram, mas eu já não ligava pra isso. Suspirei e coloquei a chave na ignição, ouvindo o ronco calmo e sereno do Dodge. Jasper, que estava no banco do carona, não tentava fazer meu humor mudar a cada segundo, fiquei satisfeito com aquilo, por ele entender que eu realmente não estava me importando com absolutamente nada.
Às oito em ponto eu empurrava as portas de vidro do Corboard High School, localizado exatamente no centro do Upper East Side,
Depois que voltei para a minha família, vivemos praticamente como nômades, nunca parando por mais de um ano numa mesma cidade. Ali estávamos nós,
Cada segundo naquela sala apertada me pareciam horas. Não prestava atenção no que o professor dizia, decorara tudo mais do que todos, sabia mais até que o próprio professor. Ao final do primeiro tempo, hora do almoço, voltei para o carro, tentando me libertar da confusão em minha mente provocada pelas mentes dos outros naquela escola. Eles, incrivelmente, me fizeram lembrar do primeiro dia de Bella na Forks High School, e a enchurrada de memórias me atingiu outra vez, trazendo consigo mais de uma década de dor e sofrimento que eu carregava sem nenhum pesar. Eu merecia aquilo tudo, até mais.
De repente ouvi Alice batendo no vidro da janela. - O que foi?
- Edward, ficamos preocupados com você. Perdeu já metade do segundo tempo.
Fiz uma careta. - Pode dizer aos professores, ou quem seja lá quem procure por mim - coloquei meu horário na mão dela, minha lista de assinaturas e a chave do Dodge. -, que me senti mal e tive de ir pra casa.
Alice não demonstrou nenhuma emoção com minhas palavras além de pena. - Tudo bem, acho que posso tomar conta do seu carro por um tempo. Só que Carlisle ficará bastante chateado; ele não gosta de te ver assim. Pra falar a verdade, nenhum de nós gosta.
- Eu sei. Mas vocês vão ter que me desculpar, eu não posso reverter essa situação.
Alice revirou os olhos. Isso não é verdade, pensou, antes que eu saísse do carro e corresse para longe dali. Busquei lugar onde pudesse simplesmente jogar tudo para o alto, sem me preocupar com nada. Fui parar dentro do Grand Canyon; não era exatamente o que eu queria, mas podia servir por um tempo.
Deitei-me em uma das pedras e relaxei, deixando com que o sol me atingisse e fizesse reflexos em arco-íris nas pedras perto de mim. Não realmente me preocupava em ser encontrado tanto por um humano quanto por um vampiro, não me preocupava há tempos. Enquanto contemplava o silêncio do qual aprendi novamente a gostar tanto, fechei os olhos.
Eu era um egoísta sádico, nunca tive dúvida daquilo. Cometi o maior erro da minha existência, deixei Bella, ao invés de ficar e lutar por ela. Tinha medo de machucar a mim mesmo, apenas era fraco demais na época para admitir. Mas além de tudo o que pudesse fazer para tentar acabar com meu sofrimento, tornei tudo mais pesaroso para mim mesmo.
A maioria das cicatrizes que eu carregava pelo corpo foram porque tentei mostrar ao mundo o monstro que eu era. Minha família me impedia em todas as tentativas, algumas até por muito pouco. Cheguei a receber uma advertência por carta vinda de Volterra, mas não dei a mínima. Os Volturi me fariam um favor imenso se me exterminassem. Sabia que deixava meus pais furiosos por tentar inúmeras vezes, mas minha vontade de ser liquidado, agora sem ela, era infinitas vezes maior.
“Que o nosso amor pra sempre viva
Minha dádiva
Quero poder jurar que essa paixão jamais será palavras”
Lembrava claramente de quando veio a notícia, a segunda memória mais completa que eu possuía. Era inverno em Boston, e meus parentes aproveitavam para caçar. Eu fui de má vontade, obrigado a não me tornar uma ameaça tanto para mim quanto para os outros ao meu redor, a deixar meus olhos dourados. Esme ficou perto, pois era quem tinha mais paciência com o modo que eu me comportava recentemente. Na maior parte da caça, apenas conversávamos.
Então Carlisle apareceu como uma flecha em nossa frente, a face desfigurada
- Bella morreu.
A princípio eu não acreditei, mas quando vi a imagem do corpo sem vida em sua mente, perdi a noção, perdi a cabeça. O que eu queria naquele momento era morrer também. Não existia um mundo sem Bella, era completamente impossível.
Eu urrava de dor, o eco da minha voz pernetrando a floresta. Tentei me desvencilhar dos braços dos meus irmãos e de meus pais, mas todos em cima de mim, e meu corpo não obedecendo, forçaram-me a cair de joelhos no chão. Agora eu sentia como se tudo o que eu sabia ser real estava desmoronando. Meu mundo estava se tornando poeira, se despedaçando. E o mesmo eu sentia dentro de mim, como se tudo tivesse sido destruído. Tudo o que fiz por ela foi para que tivesse uma vida dignamente feliz. A sensação do toque em sua pele, de minhas mãos passando por seus cabelos macios, de seu coração ritmado acelerar rapidamente e depois desacelerar lenta e exaustivamente de repente se tornaram um grande branco em minha cabeça, eu já não lembrava mais de quase nada. O rosto da minha tão amada Bella continuava em minha mente, nada mais me importava.
Que queria ir imediatamente para perto dela, observar seu maravilhoso rosto mais uma vez, tentar provar que o que Carlisle me contara era uma mentira. Num único momento de sensatez, fui forte o suficiente para me livrar de todos e disparar para Forks.
Tinha sido ridiculamente imaturo para tomar Bella por minha, transformá-la do jeito que ela queria, que eu queria. Eu a abandonei, pensando o melhor para ela, condenado-a a morte.
Demorei demais para tentar me redimir por todo o transtorno que a fiz passar. Ao chegar a Forks, na clareira onde passamos tão inimagináveis momentos, a terra estava fresca sobre a cova. Pareceu como se atingissem meu corpo pesada e afiadamente. O nome dela não era mais o que eu conhecia. Ela, afinal, tentara mudar sua vida depois do que causei:
Isabella Marie Black
11.09.1991 - 24.05.2023
AMADA FILHA E ESPOSA
Voltei para a mansão. Eu precisava fazer aquilo, estava sozinho, e queria afastar a dor para sempre. No jardim, peguei alguns pedaços de madeira que estavam jogados e com eles formei uma pilha, depois ateei fogo, pronto para me juntar a Bella do único modo que ainda me restava.
Minha família me segurou antes que eu virasse cinzas. Estava tão bem dentro daquelas chamas quentes, tão absorto de enfim acabar com aquela saudade que retaliava-me por dentro, que quase não me dei conta da dor enorme a mim proporcionada.
Desde aquele dia haviam se passado doze anos. E em cada um de seus aniversários eu fazia uma visita, sem que ninguém, fora os Quileutes, soubesse que eu estava lá - sem, obviamente, dirigir a mim um único som ou um olhar, seus pensamentos falavam por si sós.
Senti como se a vida estivesse me deixando aos poucos por uma segunda vez, só que essa me trazia mais dor. Mas o que era a vida sabendo da felicidade dela comparado à que eu poderia ter passado ao lado da minha Bella? Não mais do que alguns segundos. Com Bella eu poderia ter compartilhado a eternidade, mas não o fiz por respeito à mortalidade dela e por medo de fazer com que sofresse o mesmo que eu.
Respirei fundo e deixei o Grand Canyon.
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