Solitário - Capítulo 09: Acabou

Acordei. Abri meus olhos e vi que não estava mais no quintal. Estava em minha confortável cama. Em meu quarto. Era tarde. Não aparentava estar mais claro, e quando olhei por entre as cortinas das janelas, percebi que já era noite.

Corri novamente – vestido do jeito que estava – para o quarto ao lado do meu. Bryan estava lá, deitado, dormindo – creio, eu – em sua cama. Ele estava dormindo de uma forma serena, calma, tranquila.

Nada daquele pesadelo parecia ter havido pela tarde. Pesadelo. Foi um dos piores dias de minha vida. Saber que eu poderia perder parte de toda a minha vida me deixou em pânico. Tentei lutar o máximo que pude, mas o soldado em mim estava nervoso e confuso, não sabia se lutava ou se escondia do ataque inimigo.

Finalmente, ele tentou – apenas tentou – lutar. E o que conseguiu fazer, pelo menos o fez certo. Tentou não estragar o que estava sendo feito, e conseguiu não estragar. Até que ele estava orgulho de si mesmo. Antes ter a aparente neutralidade em seus atos, do que arruinar completamente o socorro.

Bryan estava dormindo profundamente. Nem cheguei a entrar completamente em seu quarto, fiquei ali na entrada com a porta aberta. Fiquei apenas o olhando, acho que esperando alguma coisa me dizer que aquilo não havia desaparecido. Que estávamos ainda em perigo. Ou que tudo fosse apenas um sonho bom, muito bom.

Despercebido do que estava acontecendo ao meu redor, me assustei quando mamãe tocou levemente meu ombro com sua mão. Ela estava com um olhar tranquilo, acolhedor, maternal.

Eu estava com medo, apesar de tudo, de ter decepcionado a mamãe. Eu deveria ter feito algo para ajudar, e, no entanto, fiquei apenas parado, sem saber o que fazer. E, o pior de tudo, é que tudo foi por minha causa. Fui eu quem deu a ridícula ideia de sairmos e brincar no quintal.

Sempre brincamos lá, e nunca tivemos problemas, mas justamente hoje eu havia prometido à mamãe que ficaríamos no quarto descansando. Descansando de uma doença que não existia, descansando de uma mentira.

“Jasper, meu filho, está tudo bem com você?” mamãe me perguntou, agora abaixando um pouco para deixar que seus olhos encontrassem os meus em linha reta.

“Sim, mamãe, está tudo bem. Obrigado!” Não pude dizer mais nada, eu não queria deixar mamãe mais triste ou brava ainda comigo – neste momento, ela já deveria saber de tudo, de toda a mentira.

“Não agradeça, querido. Eu soube o que você fez. Foi muito cor...” – a interrompi.

“O que eu fiz? Mãe, eu não fiz nada! Apenas fiquei com as pernas tremendo, com o corpo todo tremendo de medo e de terror com tudo aquilo.” Acho que fui rude com ela, e comecei a quase que gritar. E antes que pudesse me interromper, continuei. “E se você falar que eu fui corajoso, vai ser a maior mentira que você já disse em toda sua vida. Seu filho é um covarde, que não tem reação alguma quando o seu irmão querido está correndo risco de vida!” – não aguentei e comecei a chorar desesperadamente.

“Joe me disse que foi você quem o avisou de Bryan. Você fez uma das coisas mais importantes, Jasper. Não se culpe pelo o que aconteceu antes e depois. Acidentes acontecem.” Mamãe era a pessoa mais amorosa que havia no planeta, talvez no universo. Ela sabia que eu era culpado, só creio que não queria me dizer aquilo.

“Não me venha com essas coisas, mãe. Por favor!” Caí ajoelhado no chão, minha cabeça em minhas mãos, lágrimas brotando incessantemente de meus olhos, soluços ecoando de minha garganta.

Mamãe apenas me abraçou, e repetiu. “Não foi sua culpa, meu filho. Não foi culpa sua! É comum as pessoas se desesperarem em frente ao perigo.”

“Não aos soldados, mãe!” disse olhando profundamente em seus olhos. “Eu nunca posso falhar, ainda mais com meu irmão!”

“Eu admiro seu carinho por seu irmão. Os seus sentimentos por ele são fortes o bastante para vocês se sentirem como se fossem um só. Mas acidentes acontecem, meu querido.”

“Mas se eu não tivesse dado a ideia de sair lá fora para brincar...”

“... Vocês teriam ficado em casa brincando de batalha até seu irmão ouvir as escravas vindo e sair correndo atrás delas. E você, então, do jeito que te conheço, sairia correndo atrás dele e depois vocês iriam brincar lá fora.” Ela me deu um beijinho no topo da cabeça. Eu não merecia todo esse carinho, essa compreensão.

“Eu menti para a senhora, eu não queria ir para a casa da vovó.”

“Está tudo bem. Quando eu era pequena, também não gostava de deixar minhas brincadeiras de lado para ir à casa de minha avó.” Oops, por essa eu não esperava. Levantei meu rosto, incrédulo, para ver se mamãe estava blefando. Ela não estava. “A senhora me desculpa?”

“É claro que lhe desculpo, meu filho. Você é meu filho, eu tenho de ser compreensível com você, pois eu já passei por sua idade e sei como são as coisas.” Essa era a mamãe, compreensível até com as mentiras esfarrapadas para se fazer outras coisas ridículas, como brincar.

Olhei para ela e beijei sua bochecha, como ‘Obrigado’ em resposta a tudo que ela me faz, ao perdão por fazê-la de trouxa, por deixá-la preocupada com nossa saúde.

Mas, de imediato, ouvimos o Bryan tossir no quarto. Entramos correndo, esperando ver ele sentado, ou fazendo alguma coisa – como escutando nossa conversa para tirar sarro de mim depois –, mas ele estava deitado, parcialmente acordado.

Mamãe pôs as mãos em seu rosto, o segurando, esperando que ele respondesse ao seu toque. Ele abriu os olhos, sentou e vomitou sangue. Desespero de novo crescendo em mim.

Mamãe, nervosa, correu para a porta do quarto e pediu socorro à Noah. “Noah, pelo amor de Deus, querida, me traga lençois novos e uma bacia com água. Bryan está passando mal. Peça para que alguém chame o doutor!” – acrescente ‘novamente’ depois de o ‘chame o doutor’, mamãe. Você pode dizer isto depois dessa nossa conversa na entrada do quarto de Bryan.

Mamãe voltou correndo para a cama, ficou ao lado de Bryan, e pôs a mão em suas costas massageando-a com pequenos círculos. Eu? Fiquei paralisado, novamente. Logo Noah voltou com água e os lençois, os pondo na outra ponta da cama, onde o pé de Bryan não chegava ainda.

“Bryan, meu filho, o que você está sentindo? Me diga!” mamãe disse, desespero crescendo em sua voz.

Minha reação, então, veio atrasada. Um pouco preguiçosa ela é, eu diria. Eu apenas peguei um pano não muito grande e molhei na água da bacia. Instintivamente, limpei sua boca e queixo que estavam sujos de sangue. Éca, nunca vi isso antes!

“Mamãe, estou me sentindo mal. Estou com dor. Dor.”

“Onde dói meu filho?”

“Dor em tudo. Nos braços, nas costas, aqui no peito, nas pernas...”

Mamãe se virou para Noah, ainda que continuasse a massagear as costas de Bryan. “Será que foi por causa da queda?”

“Não sei não, senhora. Já mandei Merryl chamar o doutor. Ele saiu correndo com dois dos cavalos mais rápidos daqui da fazenda, senhora. Em breve, o doutor estará aqui para ajudá-la” Noah disse, tentando acalmar mamãe.

“Estou me sentindo fraco” Bryan disse – sim, pela sua voz eu percebia isto.

“Tudo bem Bryan, querido. É só por hora, logo você estará bem, não!? Você é um menino muito forte!” mamãe disse, tentando soar confiante – pelo menos ela estava tentando. Nisso, me dei conta: fazer algo!!!

“Sim, Bryan. Você é forte! Lute! Você é o marechal mais forte de todos os exércitos do mundo!” Bryan sorriu com o que eu disse, e mamãe olhou para mim confusa. Mais tarde, quando tudo isso acabasse, eu explicaria tudo para ela.

Minutos depois, o doutor retornou à nossa casa. O doutor Nicholas Fields, aquele que tinha vindo em casa hoje pela manhã – ele deve ser o único pela região, pois é sempre ele que vem até aqui.

Mamãe se levantou e ele tomou o lugar de mamãe, ao lado de Bryan. Pôs as mãos nas costas de Bryan, e fez com que ele se deitasse. Ele abriu sua mala branca, que já estava depositada na mesinha ao lado da cama, e tirou alguns instrumentos prateados. E tirou aquele mesmo que estava quando foi me examinar pela manhã, ouvindo o que estava acontecendo dentro do meu tórax.

Mais umas passadas e olhadas em Bryan, e ele pediu uma sala vazia, para ficar a sós com mamãe. Mamãe pediu que Noah fosse junto – talvez ela soubesse que a situação de Bryan era grave e seria de grande custo sua recuperação. Fiquei sentado com Bryan, conversando um pouco com ele. Eventualmente, ele vomitava sangue de novo, mas eu estava segurando outra bacia – a bacia funda que sempre fica embaixo de nossas camas – para que ele vomitasse ali dentro, e não em cima de si mesmo – e em mim, claro.

Eles três demoraram na sala, não tenho ideia do que estejam conversando, sobre o que está acontecendo. Apenas sei que Bryan está doente. Muito doente. Ele não parava de pôr para fora sangue. Em breve, ele estaria sem mais sangue algum, e eu então teria de dar o meu para ele – ele é meu irmão, não é!? Eu teria de dar meu sangue, já que somos do mesmo sangue – eu só não sei como ele iria receber o meu sangue de novo... bebendo? Urgh...

Então, como surpresa, ouvi um alto baque, um estrondo vindo da sala de onde vinham as vozes. Ouvi papai dizer – quando foi que papai entrou na conversa da sala? – que ela estava muito preocupada, mas que iria ficar bem. Quem havia desmaiado? Mamãe ou Noah? Pelo estado de mamãe, aposto que foi ela!

Depois de mais sangue ser regurgitado, e mais vozes na sala lá embaixo, todos voltaram – exceto mamãe – com tristeza em suas faces. Todos vinham cabisbaixos, sem saber como dizer algo. Era como se fosse um segredo, e dos difíceis, complicados de se entender, que eles tinham de falar, mas não sabiam como o fazer.

Olhei para Noah e fiz sinal para que ela ficasse ao meu lado. “E mamãe?” Noah apenas me respondeu aos sussurros: “Ela está bem, está na sala. Desmaiou.” Eu sabia, e ganharia esta aposta se ela estivesse valendo.

Mas o clima não estava para brincadeiras, ele estava pesado, carregado. Havia algo a ser dito, e isto não estava sendo feito. Mais sangue. Mais um pouquinho. Olhei para papai.

“O que foi? O que está acontecendo? Qual será o tratamento de Bryan?” disse tudo de uma só vez, querendo saber o quanto antes o tempo que demoraria a Bryan para se recuperar.

Mais sangue.

Mais sangue. Respiração fraca. Percebi que seu tórax não subia e levantava com força e velocidade como antes. Olhei para os adultos novamente. Todos estavam um ao lado do outro. Olhavam para si, e depois para os outros.

“Papai?” eu disse, já impaciente com toda essa demora. Havia coisa a ser dita e eu queria ouvir o que for que tenha que ser dito.

“Filho...” papai tentou começar, e então percebi que se formaram lágrimas no canto de seus olhos. Nunca o vi chorar. Nunca. Primeira vez. “Eu... acontece que...” Ele abaixou sua cabeça, envergonhado, triste, em desespero. Eram tantas as emoções que eu conseguia ler de sua face. “Eu não consigo...” E balançou a cabeça, triste, voltando a chorar, agora alto com soluços.

“Senhor Jasper, há uma coisa que o senhor precisa saber...” o médico começou.

Mais sangue. Mais um pouco. Menos trabalho do pulmão.

“Preciso saber o que está acontecendo! Por que tanto sangue?”

Novamente um olhava para o outro, sem saber como começar, como continuar, e enfim, terminar tudo.

Mais sangue.

“Jasper, brinque todos os dias, está bem? Se-ja fe-lizzz...” Bryan disse, extremamente fraco.

E o respondi sorrindo, sem perceber a gravidade do estado de saúde de meu irmão – e o que ele quis dizer com aquelas palavras. “Claro, meu irmão. Sempre. Mas você também!”

“Eu irei. Sem-pre...” E dormiu. Não saiu mais sangue, nem outra coisa. Apenas fechou os olhos, e lhe disse: “Tudo bem. Durma bem, meu irmão. Até amanhã!”

E então percebi a gravidade. Noah estava aos prantos junto de papai, ambos abraçados de lado, chorando um choro pesado, dolorido. O que estava acontecendo? Olhei para Bryan, para o doutor, para Bryan, para o doutor. Então, creio que tudo se juntou em minha cabeça, como um grande quebra cabeça. Mamãe não desmaiaria por qualquer assunto.

“Doutor? O que está acontecendo?” perguntei incrédulo, dor e pânico crescendo em mim.

“Já aconteceu, senhor.” Oh ow... como assim? “Seu irmão, Bryan, estava...”

“Estava doente, todo mundo já sabe disto, e não é preciso ser nem médico para se descobrir isso” – raiva crescendo em mim por ele não ter feito nada –, “o seu trabalho é curar as pessoas, as tratar. Qual será o tratamento de Bryan?”

“Não haverá tratamento!”

“Como assim ‘não haverá tratamento’? Ele é meu irmão! Precisa de tratamento!”

“Ele estava com pneumonia. O vírus da doença se acentuou com a sua queda no poço úmido de uma forma inexplicavelmente rápida e incontrolável. Pneumonia não tem cura, nem tratamento. Foi apenas uma questão de tempo para que os sintomas viessem à tona.” O vagabundo do doutor me disse como se ele tivesse feito o impossível para salvar meu irmão.

Olhei para meu irmão novamente, ali deitado tranquilamente, como se estivesse apenas dormindo. Seu rosto estava numa face angelical, feliz, se não fosse pelas pequenas manchas quase apagadas, mas escuras e vermelhas abaixo de sua boca, em seu queixo.

Entendi então, que quando meu irmão me disse que ‘iria’ brincar, talvez ele não estivesse se referindo realmente ao brincar, e sim que ele ‘iria’ para outro lugar. E, então, como foi irônica a minha resposta a ele: ‘durma bem’.

Entendi o que aconteceu. Entendi tudo. Acabou! Aqui, exatamente aqui, neste quarto, ao lado de meu irmão ‘dormindo’ em sua cama, eu percebi que minha infância acabou. Tudo acabou agora. Aos seis anos, a uma semana de meu aniversário, tudo acabou!

Todo o resto de minha vida foi embora acompanhando meu irmão. Não senti mais nada além do escuro, e o frio do assoalho de madeira em meu rosto.

Foi embora.

3 comentários:

Yasmin disse...

Todo o resto de minha vida foi embora acompanhando meu irmão. Não senti mais nada além do escuro, e o frio do assoalho de madeira em meu rosto.
Não foi ao se tornar vampiro que Jasper se auto destruir ele começou aos seis aos poucos matando-se lento e dolorosamente

miriam vilela disse...

eu achei q Jasper só tinha tamanha dor e sofrimento em sua vida vampirica
mas ainda criança ele já havia começado a conhece-la...aos  seis anos, entregando a sua vida ao seu irmão....... q se foi.....para sempre.

Marcela disse...

Pobre Jasper... ele não merecia ter que passar por isso! Tou chorando cara!

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