Solitário - Capítulo 23: Cumprindo O Dever

03 de junho de 1861

Há uns dias fizemos a travessia do porto de Galveston ao porto de Tiki Island, com destino a Houston, minha ruína. Eu sabia que chegar até meu destino demoraria mais alguns dias, fazer o percurso a cavalo não é o transporte mais veloz que se há no mundo, cá entre nós.

O Sol castigava tortuosamente nossos crânios, mesmo com o chapéu, eu sentia como se minha cabeça fosse rachar assim como o solo em algumas regiões. Encarei novamente todos os tipos de plantas novamente, toda a vegetação rasteiras e escassa, prestes a morrer, se sustentando apenas com o mínimo de chuva e o intenso calor do Sol.

Animais? Poucos, apenas alguns pequenos e médios lagartos de todas as cores e besouros negros.

O deserto se estendia a nossa frente como uma extensa estrada turva por conta do calor ascendendo do chão. Todos estavam sofrendo nestas condições, e eu não estava gostando de ver todos sofrendo tanto quanto eu – pelo menos, eu estava camuflando melhor os meus sentimentos.

Marcos estava à frente de toda a nossa frota orientando o caminho com seu mapa e bússola, eu estava ao seu lado, e ao fundo, se encontrava Julio, que estava responsável por ter a certeza de que nem uma de nossas companhias afetadas pelo Sol saísse correndo por aí – nós não queríamos sair capturando as pessoas, apesar de eu duvidar muito que os pés delas fossem capazes de permanecer meros segundos em contato direto com o chão em brasas – muitos estavam descalços.

Com nossa frota protegida a todo e qualquer custo, fomos cavalgando por entre as cidades. Cada cidade que passávamos, fazíamos uma parada para pegar um pouco de água – ainda tínhamos alimento o suficiente para mais alguns dias – e descansar sob as sombras e conforto das casas.

Em cada cidade que passávamos, fazíamos uma parada. Por vezes, Cris quis vir comigo no cavalo, mesmo tendo que ficar toda encolhidinha a minha frente. Ela gostava de ficar lá, suas pequeninas pernas não permitiam que seus pés encontrassem o calço da cela do cavalo, então ela se divertia se segurando no laço da cela ou no laço do cavalo – sem contar que ela ficava protegida do calor do Sol com o tamanho do meu corpo a encobrindo.

Sempre que chegávamos, eu a dizia: “Se for gentil, vão dar tudo que quiser!”, e ela sempre concordava e fazia o que eu lhe pedia para fazer. Poucos resistiam a uma pequena criança loirinha de face angelical pedindo algo a comer, todos apenas diziam: “Que gracinha de menina!”, “Mas que menina encantadora!”, “Que anjinha mais gentil!”, e então conseguia de tudo: pães, frutos, doces que eram de sobra para ela e para mim, e ainda dividíamos com as crianças nas carroças. Ninguém ficava sem comer quando saíamos das cidades.

E em cada cidade, algo extremamente incrível acontecia: ou havia brigas entre peões que, sabe-se lá Deus como é que conseguíamos entrar no meio, ou eram maridos que iam brigar conosco pela falta de respeito de Julio...

Ainda me lembro do fato e do que aconteceu realmente. Eu estava sentado conversando com a Cris, quando Julio chegou correndo me gritando: “Jasper, é o seguinte” ele me disse se ajoelhando, ficando cara a cara comigo, “me envolvi em problemas...”

“Mas como é que alguém consegue se envolver em problemas numa cidade tão pequena que poderia ser chamada de uma vila?” lhe perguntei com sarcasmo, Cris gargalhando do que eu disse.

“Bem, eu estava conversando com uma donzela de uma beleza encantadora...”

“E o que isso pode ter te posto em perigo, Julio?” eu já estava perdendo a paciência, mas, depois pensei comigo mesmo, Julio consegue arranjar problemas no menor cubículo em que, provavelmente, ninguém conseguiria arranjar problemas.

“Bem, a donzela tem marido, e ele está atrás de mim com uma peixeira e uma baioneta em cada mão.”

O Julio sempre me admira com seus incríveis poderes para atrair problemas, não importe onde esteja, pode contar com ele para problemas. Ele não te desapontará!

“Bom, então resolva sozinho, foi você que se enfiou em problemas, você que saia” tentei soar rígido com ele. Depois, pensando comigo mesmo, percebi o quão ignorante eu estava sendo: se o homem estava atrás de Julio, Julio iria correr para seu cavalo ou então se esconderia em meio as mulheres e crianças que estávamos levando, o homem iria falar com o responsável, que por acaso sou eu, o mais infeliz de todos, e se eu não fosse capaz de deter o outro infeliz, o marido da senhorita, bem, aí não só eu, mas como Cris e toda a frota estaria em problemas também. Eu odiava o Julio às vezes, principalmente quando ele se metia nestes tipos de problemas – e a resolução destes sempre caia em minhas mãos.

“Posso enfrentá-lo, não!?” ele disse confiante, sabe-se lá porque.

“Para ele ter te enfrentado e vir atrás de você, provavelmente ele sabe atirar melhor do que o melhor dos nossos atiradores da Confederação.”

“E você quer fazer o que então? Chamá-lo para se alistar do nosso lado? Por que eu não gostaria de encontrar ele contra mim num campo...” – eu adorava sua ironia, mas ele estava sendo ironico na hora errada. Agora não, gritei comigo mesmo.

“Não, você até poderia tentar combatê-lo, mas creio que este não é caso apropriado hoje” – adicionei mentalmente, nem hoje, nem nunca, – “então... Corra! Irei reunir Marcos e os demais para partirmos.”

“Dios te abençoe Jasper. Meu Santo Jasper nunca falha, vou mandar te rezarem dez vezes o terço Jasper, dez vezes a cada hora...” ele me disse, já se levantando e correndo. Eu não tive outra escolha a fazer a não ser reunir todos realmente e partir, Cris estava comigo novamente na frente na cela – e percebi o quão divertido tudo aquilo tinha sido para ela, talvez eu devesse pôr mais vezes Julio em perigo para diverti-la, e Julio não teria como reclamar, pois ele estava me devendo uma. Uma não, várias...

Sempre algo acontecia na chegada, na estadia ou na saída das cidades. Julio estava sendo um gigantesco amuleto para problemas. Na última, nos perdemos.

“Podemos pedir ajuda profissional” Julio me disse – mas o que é que ele estava pensando? Ele tinha um cérebro ou uma batata na cabeça?

“Julio, o Marcos é o nosso profissional, não atrapalhe seu serviço” lhe respondi amargamente, estávamos perdidos e ele conseguia ainda fazer gozações de nosso estado? Havia vezes que nem mesmo eu acreditava no que Julio era capaz de fazer, ou falar.

Mas fato é que todos se orgulhavam do que estávamos fazendo (com ou sem o Julio para nos atrapalhar), tirando os desprotegidos de um local tão perigoso, então os moradores locais simplesmente nos ajudavam no que podiam. Se déssemos sorte, ainda ganhávamos algumas frutas e pães. Mas nunca ficamos numa cidade por mais de um dia, tínhamos que chegar o quanto antes a Houston para que possamos voltar a Galveston para pegar mais refugiados. Esta rota seria a mais fixa em minha mente pelos próximos dias, semanas, e quem sabe, meses.

Eu não estava gostando de ter reviver tantos sentimentos, mas eu passaria por cima de meu próprio orgulho para que outros pudessem ter uma vida melhor, e se para isto fosse preciso que eu fosse rígido, inflexível com o que sentia ou lembrava de meu passado, assim eu o faria.

Em cada cidade que passávamos, eu ainda escrevia uma sutil carta contando por menores o que acontecia ou deixava de acontecer conosco. Eu pedia para que um cavaleiro da cidade a levasse até Tiki Island, pois de lá eles levariam ao tenente-coronel Jackson em Galveston por minha ordem.

Obriguei-me a esquecer dos detalhes vividos até agora, e olhei para frente. Marcos apenas me chamou a atenção fazendo sinal para frente, mal percebi o quão já havia escurecido nosso dia. A escuridão, quanto mais adentrávamos, mais se tornava negra. Percorri a visão mais minuciosamente, e percebi que estávamos perto de mais uma cidade, só não sabia a qual delas estávamos.

Arduamente, percebi que o solo já não estava tão seco, e as plantas estavam crescendo com uma coloração mais verde escura e perene. Altas árvores iam brotando assim que caminhávamos. Animais mais variados nos cumprimentavam com sua presença pelo caminho, como cachorros, galinhas, bois e vacas, cavalos... estávamos entrando na zona rural ao Sul de alguma cidade.

Olhei para Marcos, e ele estava analisando o mapa para tomar conhecimento de que cidade era aquela.

“Então, qual cidade?”

“É Houston já...” ele me respondeu assustado, o que me deixou da mesma forma.

“Mas não deveríamos demorar mais uns dias para Houston?”

“Sim, Galveston fica a cerca de 80 km de Houston, mas vai ver que chegamos antes por andarmos sem parar muito” – esta era uma boa alternativa, pois minha implicância em chegar o quanto antes era prioridade nos últimos dias.

“Ok, vá avisar Julio que estamos chegando” o ordenei, o que ele fez rapidamente.

Continuei liderando a tropa, agora com um sentimento estranho tomando conta de mim. Havia esperança e nervosismo por chegar em casa, eu queria chegar em casa, em minha casa. Rever minha família não estava sendo tão mais doloroso quanto era há alguns minutos atrás. Se eu tivesse sorte, encontraria toda a minha família reunida, todos em casa, então eu poderia abraçar calorosamente minha querida mãe, a mulher que sempre esteve preocupada comigo e eu nem ao menos lhe retribuí o carinho.

Agora, apesar de ela estar sem mais nem um de seus dois filhos, ela teria a oportunidade de ter uma filha, uma menina que ela sempre quis ter, a irmã que ela sempre quis me dar. Agora ela teria uma terceira chance de ser a magnífica mãe que ela sempre foi tanto para mim quanto ao meu irmão Bryan – como era estranho dizer seu nome agora, ele não parecia fazer parte de minha vida há séculos. Cris era a oportunidade que eu tinha de devolver felicidade a minha mãe, o que eu tentaria fazer arduamente, custe o que custar.

Quanto mais andávamos, mais a zona urbana se tornava alta e imponente, suas casas monstruosas em suas antigas construções e mal-tratadas pelo tempo magnificavam quem ousasse caminhar por entre elas. Entramos na cidade, e então Marcos já estava do meu lado novamente. Aquela floresta de casas agora abria espaço para passarmos pelas ruas. Todos que estavam caminhando iluminados pela luz das lamparinas pararam suas vidas para nos saudar, provavelmente, todos sabiam quem éramos e o quê exatamente estávamos fazendo aqui.

Os homens tiravam os seus chapéus nos cumprimentando; as donzelas apenas nos cumprimentavam com seus leves lenços brancos em mãos; as crianças – apesar de tarde – pulavam e brincavam com seus brinquedos nossa passagem; os oficiais aqui presentes nos deram as boas vindas em continência e depois fizeram sinal para que os transeuntes apenas recuassem a fim de dar-nos passagem livre.

Agradecíamos eternamente a todos, ser bem quisto daquele modo me deixava honrado de fazer o que faço, muito me deixava ansioso por mais, eu queria ajudar mais pessoas inocentes, e as pessoas daqui concordavam e apoiavam estes atos.

Faltava pouco para chegar ao local de destino dos nossos viajantes, mas demoraria pouco mais para chegarmos ao Norte, pois a fazenda de minha família se encontrava lá.

Eu tinha um dever a cumprir, e tinha de cumpri-lo o quanto antes. Fomos sem mudanças de rumo para o local onde todos iriam viver por tempo indefinido. Havia apenas um senhor de vestes limpas e aparentemente novas na grande porta. Desci e parei a sua frente, e ele apenas me encarou sem dizer nada, resolvi ter a honra.

“Boa noite senhor, sou o Major Whitlock e sou o responsável por fazer a primeira viagem dos refugiados da batalha que está acontecendo na ilha de Galveston. O senhor se importaria em me dizer onde ou quando eles poderão entrar? Aqui é o lugar certo, não!?” a última frase me virando para Marcos.

“Sim, estamos no lugar certo, senhor” Marcos me responder.

Voltei minha atenção ao senhor que ainda me encarava curiosamente.

“Bom, sim, é o lugar certo...” ele estava inseguro com o que dizia, parcialmente assustado, talvez não esperasse tantas pessoas de apenas uma vez, “vocês podem entrar. As camas estão preparadas, e elas podem depositar seus pertences ao lado das camas. Por favor, entrem!!!” por um momento, ele se permitiu sair do transe e falar diretamente conosco, não consigo mesmo mentalmente.

“Tudo bem” e fiz sinal com as mãos para que todos entrassem, “eles não são muitos, apenas aparentam ser, e também não trouxeram muito consigo, havia pouco o que eles pudessem ou queriam trazer de toda a tragédia que estava acontecendo por suas moradias. Eles trouxeram alimentos que os demos em nossa base e o que ganhamos pelas cidades que percorremos.”

“Aham, tudo bem. Entre o senhor também, encontrará um lugar apenas para o senhor” ele me disse “acordado”, até aparentava estar feliz.

“Não, obrigado, tenho que ir a um lugar primeiro aqui em Houston e depois voltarei para Galveston para mais viagens” lhe respondi respeitosamente, eu não queria que ele entendesse que eu estava fazendo desfeita com a simpática proposta.

“O senhor tem certeza? Está tarde, e o senhor precisa descansar...”

“Tenho algo a fazer primeiro, e a guerra não tem tempo para descanso. Obrigado, mas tenho que ir” conclui tentando fazer com que, nem ele, nem ninguém, me impedisse de levar a felicidade ao lar de minha mãe novamente.

Olhei ao redor, e percebi que a fila estava totalmente alojada, as mulheres saindo primeiro e depois as crianças, que saíam com ajuda das próprias mulheres – algumas crianças, provavelmente, foram “adotadas” pelo caminho, e Cris ainda seria.

Olhei para o meu cavalo e vi Cris ainda lá em cima se divertindo fazendo tranças na crina de meu pobre cavalo, que estava virando seu brinquedo favorito, seguido de sua boneca de espiga, claro.

“Cris, querida, você já deu uma espiada aí dentro?” lhe perguntei ocasionalmente.

“Sim.”

“Gostou?”

“Ahn ahn...” ela me disse apenas balançando a cabeça, tristeza e repulsa em seu rosto. Aquela imagem, a cena, o sentimento percorrendo por seu rosto feriu profundamente o meu pobre coração, se ela tivesse enfiado uma grossa e afiada estaca em meu peito, teria sido menos dolorido.

“Tudo bem, já volto, não sai daí...” lhe disse, e depois saí correndo procurando por Julio ou Marcos. Por fim, encontrei Julio que estava auxiliando um outro senhor a escrever o nome de todos os recém chegados em um papel, formando uma pequena lista.

O chamei, e ele largou tudo o que estava fazendo para vir em minha direção.

“Sim, o que há?”

“Eu vou até a fazenda de meus pais, levarei Cris para que ela fique com minha mãe. Lá ela estará segura e contente, a casa de meus pais se inflará com a felicidade que chegará junto a ela.”

“Mas, precisa ser agora? Justo agora, no meio da noite?” ele me perguntou assustado.

“Sim, eu apenas... preciso... Irei agora, e na volta, passarei aqui para trocar de cavalo, este está exausto. Eu gostaria que você ficasse aqui com Marcos ajudando todos a se instalar até quando tudo estiver em seus lugares, e então depois vocês voltarão para Galveston. Tudo bem assim?” o propus sem saber de sua real escolha, ele não aparentava flexível para más propostas como a minha, e ele se preocupava comigo, desnecessariamente.

“Olhe, tem certeza disto? Não precisa levar ela agora e depois retomar a estrada” – novamente, preocupado desnecessariamente.

“Tenho, será melhor assim, não quero demorar...”

“Mas, como você voltará? Como chegará até lá? Você não sabe...” ele tentou me atingir, sem sucesso.

“Eu sei, e não duvide de mim...”

“Olha, eu não gosto disso, estou com um mau pressentimento. Você poderia apenas esperar por mais algumas horas, não!?” ele tentou me influenciar.

“Não, Julio, eu preciso disto, isto está me matando... Eu... eu preciso ir, e preciso agora. E é o que farei” lhe disse rigidamente, não sabendo se ele estaria levando todo aquele discurso seriamente ou não, “e não ouse me desobedecer, Julio, por favor. Sou teu superior, mas não gostaria de lhe aplicar nenhuma detenção.” Olhei encarecidamente para que ele aprovasse minha ordem sem repulsa, então por impulso, apenas lhe implorei – era necessário. “Por favor, você me deve uma, por favor...”

Ele olhou para os lados, tentando buscar respostas ou evasivas para o que eu lhe estava pedindo, mas ele não tinha como fugir, eu era seu amigo e seu superior, ele tinha de aceitar o pedido como amigo em forma de dívida, e tinha de aceitar a ordem de seu superior. Ele tinha de aceitar, eu acreditava firmemente que ele teria de aceitar, mais cedo ou mais tarde.

“Tudo bem, mas tome cuidado” ele me disse com uma fusão de preocupação e derrota emanando de si ao mesmo tempo, “tome muito cuidado. Se te perder, pare e passe a noite no local onde estiver. Se não passar até o meio dia de amanhã, iremos te procurar.”

“Não preciso de babá, mas obrigado, irei me precaver, não se preocupe” lhe respondi afetivamente – eu estava feliz por sua resposta, eu precisava do apoio de ambas as partes que me seriam úteis. “Avise tudo ao Marcos, iremos agora. Obrigado. Até mais.”

“Ok” ele me respondeu, mas não pude mais perceber se ele ainda estava preocupado, pois eu já estava me virando para ir de encontro ao cavalo e à Cris – que continuava a brincar carinhosamente com a crina do cavalo toda em pequenas e longas tranças.

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