Solitário - Capítulo 26: No Topo

Mesmo em minha escuridão, eu ainda podia sentir ao meu redor o que acontecia. Eu senti algumas pessoas passarem por mim, senti algum odor desconhecido por mim, creio que podia até sentir a textura da terra que se encontrava logo abaixo, se é que era terra...

A queimação em meu corpo ainda persistia a me atormentar a pacificidade. Eu não sabia por mais quanto tempo eu teria de conviver com esta dor excruciante, aliás, eu ao menos sabia o motivo de estar sofrendo tudo isto.

Não sei o que está acontecendo comigo, tudo parece tão incompreensível neste momento, inclusive sobre mim mesmo.

Eu não queria aceitar, mas eu estava amedrontado, tremendo por cada coisa que eu já tinha feito em minha vida. Talvez tudo isto fosse apenas o peso que eu teria de sentir para morrer... ou então virar um fantasma. E falando nisso, se fantasmas existem... bom, então creio que devo acreditar que lobisomens, zumbis, Frankesteins também existam. Isto não é uma boa coisa...

A humanidade corre perigo com todos estes tipos de... de ‘coisas’ circulando livremente por aí, e eu realmente gostaria de ajudar – ajudar a reduzir isto ou a esconde-los, não a ser mais um deles.

Aos poucos percebi que a dor diminuía, a fúria do fogo dentro de mim se tranquilizava lentamente, pouco a pouco. E eu, esperando aqui sabe-se lá onde, que tudo acabasse o quanto antes para saber onde é que eu estava... ou o que eu tinha me tornado, o que era pior de todas as respostas que eu gostaria de receber.

Após um longo período, eu puder sentir meus sentidos se aguçarem e que a queimação se afastava de meus pólos em direção contínua ao meu peito, ao fraco e vagaroso coração. Até que, maravilha, meu coração se aquietou. Nada! Nem uma batida, muito menos um leve tremor.

Eu havia me transformado num monstro, seja lá qual o que seja ele.

Tentei me movimentar por mais mínimo que fosse o movimento, e então consegui mexer normalmente. Abri os olhos persuadido pelo que estava sentindo, mesmo que meu coração aparentasse não estar mais em meu peito.

Eu deveria estar morto... então... eu seria um fantasma também?

Mesmo se eu estivesse morto, como é que é possível que um morto pense, fale, se mova... eu sou uma aberração... Que as escolas de Medicina não me encontrem!

Abri os olhos e me sentei, eu estava em um amplo campo aberto. O céu estava se manchando com leves toques de laranja, vermelho e um escuro azul. As nuvens estavam em perfeita sincronia dançando para o fim da tarde abrindo espaço para que uma linda e incrivelmente brilhante lua surgisse lá em cima.

Mesmo escurecendo, eu podia ver com perfeição tudo o que estava ao meu redor: cada imperfeição dos poucos troncos das árvores, cada formiga que caminhava em trilhas em direção ao formigueiro com alimento para sua rainha e a prole real, cada pequeno broto de grama, cada grão do solo... eu podia ver tudo, era como eu estivesse com potentes lentes de aumento ou visão em meus olhos. Isto era legal...

Olhei para mim mesmo agora, eu adoraria ver coisas em mim que eu nunca tive a chance de encontrar... talvez alguns traços faciais ou corpóreos que me fizessem lembrar quem eu era, que, aliás, eu só me lembrava do nome: Jasper Whitlock.

Eu estava com um coturno de couro negro de pouco brilho por conta de alguns grãos espalhados pelas laterais e alguns rasgos na parte inferior, o cadarço totalmente sujo. Minha calça e camisa era de um azul marinho, com alguns bolsos e duas armas na cintura e algumas brilhantes cápsulas de munição. Eu tinha uma estrela em meu peito, e logo abaixo dela, uma inscrição bordada com linha branca, Major Whitlock. Me vendo assim, percebi o quanto eu estava todo sujo... e fedendo – creio que morrer fede mesmo, deve ser normal.

Normal? Será que ser um fantasma é normal? Barrei os contínuos questionamentos que eu estaria me fazendo agora, mas como sou um ‘recém-alguma-coisa’, eu teria de achar aquela mulher de novo para lhe perguntar.

Resolvi prestar atenção no que eu via, mais especificamente, nas pessoas que estavam chegando suculentamente perto de onde eu estava. Elas apenas percorriam uma pequena trilha, mas eu sentia seus aromas como se estivessem a poucos centímetros de meu nariz. Elas cheiravam como... como... cheiravam muito bem...

Senti minha boca ser preenchida totalmente por saliva, eu estava cobiçando aquilo. Eu precisava daquilo... do sangue.

Sem pensar o que eu estava fazendo, me levantei e, sem querer, ataquei as pobres pessoas que estavam ali. Não houve muitos gritos, apenas uma mulher e uma criança gritaram mais porque eu os deixei por último, já que estavam por último – eu segui a ordem em que estavam, nada mais justo, cada um com sua sorte e azar.

Não levei mais de cinco segundos para acabar com todos. Nove corpos caídos ao chão totalmente mortos, completamente drenados. O sangue acabou que por escorrer de meus lábios e cair em minha camisa. Lambi o que ainda me restava em meus lábios e depois a limpei com a manga da camisa, e somente depois, encarando os corpos ao chão que percebi o que eu havia feito – pelo menos minha garganta não doía mais, apesar de eu nem ter sentido a dor por um milésimo de segundo.

Eu estava abastecido com o sangue destas pessoas – os dois últimos, o da mulher e o da criança foram os mais deliciosos dos demais, estavam assustados, o que me ofereceu um aroma distinto... talvez, mais doce do que os outros que sequer tiveram a chance de ver quem os atacava. Os que tiveram chance de enxergar o mero borrão que eu devo ter me transformado, se congelaram de medo e não enxergaram a aparente segunda oportunidade de correr, de salvaram suas vidas. Mas o que elas podiam fazer? Elas não sabiam o que ia acontecer, e para ser franco, muito menos eu. Elas não tinham culpa de serem tão deliciosas assim.

Aliás, como é que eu cheguei e os ataquei tão rapidamente? Mas em que diabos eu me tornei? Eu era um monstro de velocidade assustadora, um assassino que drenava qualquer gota de sangue que restava ao seu redor.

Fiquei paralisado, mas então pensei em fugir. Senti esta necessidade de fugir de tudo, de todos para não fazer mal a mais ninguém, mas eu não pude. Eu precisava saber, antes de tudo, no que eu tinha me transformado, por mais cruel que eu soubesse no que eu tinha me tornado. Para minha surpresa – e resposta –, senti uma leve mistura do aroma da flor de toranja e mel.

“Nove de apenas uma vez...” uma mulher de cabelos negros e rapidamente baixa me disse olhando os corpos ao chão, com a maior tranquilidade em sua magnífica e divina voz, “você poderia ter deixado algum sobreviver, não! Só para meu rebanho... da próxima você escolhe um forte para deixar, ok!?”

“Como é? Não entendi!” lhe questionei, tudo estava soando tão estranho... eu estava sendo estranho num mundo estranho – aliás, até minha voz estava diferente... estava limpa, e soava como se fosse a doce voz de um arcanjo.

“Da próxima vez você escolhe um e deixa ele com um pouco de sangue ou o suficiente para que seu coração continue batendo, tudo bem!?” ela me disse rindo, aquilo deveria ser tão normal para ela... por que não era para mim?

“Próxima vez? Vai ter outra?”

“Sim, claro. Esta é a sua natureza, você nunca conseguirá viver sem isto...” ela disse apontando para os corpos ao chão atrás dela, “se tentar, sentirá uma dor terrível. Está é a sua vida de hoje adiante, antes você comia alimentos como pão, agora, seu alimento é o sangue: a única coisa que precisamos é a melhor bebida do universo.”

Fiquei aterrorizado, apesar de não ter achado ruim o gosto do sangue. “Quer dizer... eu fiz tudo isto aqui para viver? Eu tiro a vida dos outros para garantir a minha?”

“Sim, meus parabéns pela primeira refeição! Belo trabalho!”

“Você está sendo irônica?”

“Claro que não, por que iria?” ela me perguntou extremamente confusa – outra coisa que eu percebi em minha transformação em monstro: eu enxergava com maior claridade os sentimentos das pessoas, mas devia ser apenas uma brisa que batia no corpo e fazia com que as ondas fossem vistas minuciosamente, afinal, tanta coisa mudou e não mudou ao mesmo tempo... ela deve ver a mesma coisa, deve ser normal dentro do padrão da anormalidade de monstros, creio eu.

“Ahn... quem é você?”

“Maria, muito prazer soldado... oops, quer dizer, Major” ela brincou e bateu continência, o que não me fez compreender o sentido daquilo, mas pelo menos ela estava de divertindo com a minha situação – o contrário de mim.

“O que... o que eu sou?” a frase saiu entrecortada com a dúvida se eu a deveria ter realmente posto para fora, mas como se diz: “Antes fora do que dentro.”

“Você não sabe? Quer adivinhar?” ela brincou com a ideia de continuar me martirizando – eu não gostava dela de vez em quando.

“Bom, um... monstro? Fantasma, talvez?” franzi o cenho tentando pensar em algo mais a ser, mas envergonhado por estar imaginando que fantasma seria o menor de uma provável escala de monstros no planeta.

“Não... fantasmas não poderiam tocar as pessoas, creio. Não sei se eles existem, mas se for tomada a base de seu raciocínio, até pode ser que eles existam. Eu apenas não os encontrei ainda...” ela me disse sinceramente, o que me deu falsas esperanças, pois: primeiro, eu não era um fantasma, o que me deixou mais calmo; e segundo, eu seria mais feliz em saber que eu era um fantasma, pois ele é o mais pacífico, se assim podemos dizer... e se ela diz que eu não sou um fantasma, com certeza, eu sou coisa pior. “Já sabe o que somos?”

“Que tal para a brincadeira e me dizer logo?” – eu estava cansado de seu joguinho, eu era um monstro e ela apenas brincava com isto... será que ela nasceu assim já? Seria por isso sua tranquilidade?

“Bom, vou lhe dar dicas... talvez seu conhecimento seja evasivo como o de todas as pessoas mas vamos lá: bem, você deve ter percebido que você é mais rápido do que os outros, é extremamente forte, tem a visão e o olfato aguçados assim como os outros sentidos naturais... e você tem um dom, mas normalmente as pessoas não adicionam isso à nós... ah sim, você é a mesma coisa que eu... Já sabe?”

“Bem, eu sou um monstro egoísta que mata para viver que nem um governo com seguradoria gostaria de ter por perto. É isto?”

“Quase, isto é apenas parte de tudo...”

“Então?”

“Somos vampiros, o ponto mais alto da cadeia alimentar, meu querido Jasper. Nós somos superiores a todos estes escrupulosos humanos, mas não sinta culpa, eles se matam entre si, não sentiram falta de alguns mortos a mais... e veja só a nossa sorte, estamos num país que está passando por uma guerra, estamos no lugar certo na hora certa. Vamos, anime-se, vampiro é um ser fascinante.”

“Como isso pode me animar? Eu sou um vampiro... e mato pessoas... não sei como isso pode me animar, sinceramente...” – eu estava amedrontado novamente.

“Como isso pode te animar? Bem, a melhor resposta que eu tenho é que somos mais fortes e nada, nem ninguém, é mais forte do que nós... Nós caçamos e não somos caçados, não há possibilidade de assim sermos... com exceção dos Volturi, é claro” ela me disse diminuindo o tom de nossa conversa, mesmo que ainda fosse totalmente perceptível aos meus ouvidos.

“Tem volta isso?”

“Bem... não, mas você não gostou? Haverá mais vampiros recém-formados aqui, vocês podem se conhecer e trabalharem juntos por um bem maior...”

“Que tipo de bem maior? Há algo que eu deveria saber e você não está me contando?”

“Claro que há, mas irei lhe contar e estarei totalmente aberta às suas opiniões e sugestões. Eu sei que você está confuso, mas tenho a lhe explicar. Se a qualquer momento você decidir ir embora, eu aceitarei totalmente sua decisão.”

“Ok... Você está um pouco, digamos... pra falar a verdade, você está toda suja. Por que?”

“Não temos tanto tempo para tomar banho por aqui, e as roupas que conseguimos geralmente vem dos que abatemos. Mas não diga isto novamente para mim quando não sou eu que está todo ensanguentado, ok!?” ela me disse brincando, e eu estava começando a gostar dela. “Sabe do que a gente precisa?”

“De um banho?” tentei acertar no escuro.

“É... também, mas precisamos de mais vítimas, mais pessoas...” fiz uma careta com suas palavras, “diversão, se você preferir então. Os que você matou estão cobertos de sangue, suas roupas estão sujas e sem alternativa para uso... a não ser que você se ofereça para lavá-las” ela ofereceu.

“É... não sei...” – nós dois rimos com isso, e então, ansiosa e contente, ela me fez sinal para que fossemos para perto de uma árvore.

Ao invés de irmos apenas caminhando, ela saiu correndo numa velocidade alta, o que me fez correr atrás dela com meu novo desafio: alcançá-la. Cheguei rapidamente ao seu lado, e então percebi que ela não queria realmente ir para alguma árvore, mas queria apenas sair do alcance dos que estavam aqui para conversarmos melhor.

Decidimos parar na beira de um pequeno rio – eu decidi parar, pois eu estava totalmente à sua frente. Sentamos lado a lado no barranco que se abria no pequeno rio logo abaixo, ambos silenciados pela paisagem que a natureza nos oferecia: uma noite com um luar maravilhoso que clareava tudo o que estivesse na terra.

Maria me cutucou com um veloz e delicado cutucão de cotovelo em minhas costelas. “O que gostaria de saber primeiro sobre sua nova vida?”

“Hmm... que tal começarmos por ‘o que eu posso fazer’ e ‘o que eu sei fazer’?”

“Ok, você pode fazer tudo o que quiser: é rápido, forte e inteligente. Você é um recém-nascido, portanto é extremamente forte, mais forte do que os mais velhos, como eu. Em seu primeiro ano de vampiro, tudo em você será elevado o extremo. Você é mais forte e veloz do que os outros mais velhos, e igual aos outros recém-criados. Talvez, a única diferença em você seja a inteligência e sua habilidade...” ela estava me dizendo, até que a interrompi com o fim de sua frase.

“Habilidade?” lhe perguntei, incrédulo com não só com a essência de minha nova vida, mas com o que eu podia fazer ou deixar de fazer.

“Sim, você não percebeu ainda? Você tem a habilidade de manipular as emoções das pessoas ao seu redor. Quando eu estava brava ao te encontrar por você ter acabado com as minhas nove ‘diversões’, você simplesmente me fez sentir feliz, contente, talvez por tudo ser ainda um mistério para você.”

“Isso significa que eu influencio no que as pessoas sentem?”

“Sim, exatamente isto. Agora, por exemplo, estou me sentindo ansiosa por contar mais por que você está ansioso por saber mais.” Fiquei surpreendido com o que eu estava ouvindo, eu não esperava por isso – por isso e por todo o resto, mas tudo bem. “As habilidades são extensões do que você podia fazer de melhor em sua vida humana. Reconheci na mesma hora em que te vi que você era diferente dos demais, você era... simpático, convincente como lhe disse. Você deve ter conseguido tudo o que queria quando humano, não!?”

“Bem, só me lembro de certas vezes ouvir de meu pai que eu tinha carisma, mas não era sempre. Pra falar a verdade, não me lembro de quase nada. Por que?”

“A transformação é complicada, o veneno é doloroso e queima todo o seu corpo, todas as suas veias. Provavelmente, o veneno deve chegar ao cérebro e o prejudicar... não sei, mas também não me lembro de muita coisa de minha antiga vida.”

“Do que você se lembra?” lhe questionei, quem sabe eu conseguiria mais respostas agora sabendo de minha habilidade – talvez eu soubesse a dominar, talvez sempre soube dominar.

“Lembro que eu morava numa casa e tinha uma mãe, e que éramos pobres. Depois, quando adulta, me mudei para Monterrey. E você? De que se lembra?”

“De que eu tinha uma família, mas não sei seus nomes, de suas faces ou de onde eles são. Sei que eu estava servindo ao Exército Confederado e que tinha mentido minha idade para entrar, e que eu tinha passado por Houston e tinha de ir a Galveston por alguma razão.”

“Pode ser que, depois de algum tempo, algo te faça relembrar. Mas não fique tão feliz” ela disse por que, provavelmente, deve ter sentido que eu estava a manipulando agora, “depois de certo tempo, você nunca mais lembrará.”

Apenas concordei com aquilo, eu tinha mais o que descobrir sobre o que eu era, sobre ‘nós’.

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