Solitário - Capítulo 56: Bronze

Eu tinha de fazer algo para voltar a ser o mesmo Jasper que sempre fui.

Tudo para mim estava errado, nunca estava certo. O simples fato de respirar, apesar de não me ser tão útil além das caçadas, me aparentava estar sendo feito de forma errônea. O fato de me alimentar, aliás, era errado...

Eu estava em uma crise de existência. Nada, nem ninguém sabiam quem eu era ou podia me ajudar.

Isso, além de mim, é claro...

Resolvi voltar para minha cidade natal, Houston, no Texas. Se viajando eu acabei recuperando parte das memórias que eu tinha escolhido apagá-las – com uma ajudinha, diga-se de passagem –, agora eu esperava firmemente que, voltando ao local de onde saí, eu pudesse saber mais de quem eu sou.

Percorri os mais dispersos campos entre Kansas e Texas, Estados vizinhos.

Passei por Wellington, Edmond, Oklahoma City, Denton, Mc Kinney, Dallas, Huntsville, Spring e, finalmente, Houston. Eu estava em casa.

Assim que passei por aqueles campos, as minhas memórias retornaram a minha mente. Tudo aquilo era familiar para mim. Tudo fazia parte de minha infância e da rebeldia de minha adolescência.

Pude ver, mesmo que de relance, alguns pés de toranjas. Ah, eu me lembro de ver algumas toranjas no quintal de minha antiga casa. Lembro-me dos doces feitos com as toranjas, e também lembro que eu adorava esses doces...

Será que minha antiga casa ainda existe? Eu lembro que eu tinha algo escondido em meu quarto, só não sei exatamente o quê era...

Só havia um jeito de descobrir, e era indo até lá conferir...

Mas, antes mesmo de descobrir onde é que minha casa ficava, ao entrar na cidade, dei de cara com uma grande estátua de bronze antiga. Já estava castigada, meio enferrujada por conta do forte Sol e as chuvas, mesmo que raramente acontecessem – pelo menos, naquela época em que morava aqui era assim...

Fiquei curioso. Eu queria saber quem era aquele, pois não me lembrava dela quando eu era pequeno – apesar de que... Poxa! Faz tempo de quando eu era pequeno, não?!

Enfim, resolvi bater as mãos para tirar o pó sobressalente de minhas vestes, tentei arrumar meu cabelo ainda rebelde e fui em direção ao monumento tentando não chamar a atenção.

Uma senhorita e um senhor ali estavam observando a estátua também, mas o homem parecia saber de tudo sobre a pessoa dali, e a mocinha anotava tudo em um caderninho. Ele era velho o suficiente para ser seu avô – e eu tinha idade o suficiente para ser seu tataravô... Ok, esquece!

Resolvi chegar de fininho, em velocidade humana me comportando como se fosse um humano qualquer, e então reparei nos dizeres da placa quase apagada:

“Jasper Whitlock, bravo filho desta terra mãe, que, por ventura, deixou o conforto de seu lar para derramar seu sangue, se preciso, ao ideal Sulista na Guerra Civil Americana.

Desapareceu em 1861 quando voltava para a base onde estava destinando toda sua força e concentração: Galveston.

Bênçãos e hurras ao nosso herói local.”

Ok, isso foi estranho. Soou completamente estranho.

Mas eu gostei!

Eu estava em perfeita harmonia com o mundo, de repente! Eu estava feliz e repleto de orgulho, pois, apesar de eu querer esquecer tudo o que pertencia ao meu passado, ninguém fez o mesmo de mim. Eles se lembraram de mim, e isso tocou fundo em meu coração.

Eu estava realmente feliz. Estava radiando felicidade... Tanto o suficiente para que o senhor e a menina parassem para me encarar. Os encarei em dúvida, mas eles estavam felizes – só não sei se era por minha causa...

“Desculpe-me, rapaz, mas o senhor está bem?” ele me perguntou gentilmente.

“Sim, sim, claro!”

“Nossa, como você é parecido com o moço da estátua, moço!” a senhorita me disse levemente assustada.

Olhei de volta para a estátua. Pensei bem... Nãaooo... Eu não sou tão feio assim! Esta estátua deve ter sido feita com base nas pinturas que minha família devia ter antigamente. E esta estátua também não deve ser nova, então, provavelmente, quem a fez, deve ter tido muitos infortúnios... Essa matéria prima não é fácil de manipular.

“É? Nem tinha reparado!” fui cínico... Eu minto mal, muito mal...

“Você é daqui?” ela me perguntou.

“Eu? Eu... bem... não.”

“E da onde é?”

Ok, de que lugar? Hmm... Vamos ver... Pode ser qualquer lugar, então... Ah, vai o último lugar vai!

“Sou de Wichita, Kansas.”

“Ahn, o senhor não tem muito jeito de quem é do Kansas!”

“Mariana, tenha modos, querida!” o vovô a repreendeu. “Desculpe-me, rapaz.”

“Não, não, por favor. Não se incomode. Está tudo bem!”

“Qual seu nome?” – eu sentia que ele era extremamente simpático e confiável. Era dele mesmo que eu tiraria informações sobre Houston destes últimos anos. Décadas, para falar a verdade...

“Meu... nome?” – oh ow... “Sou Peter Black Walker. Muito prazer” o cumprimentei apenas com a cabeça – mesmo estando no crepúsculo, e minha pele não brilhando com os últimos raios do Sol, ele sentiria que minha pele é mais fria do que o normal. Ele saberia que eu não sou “normal”.

“Muito prazer, senhor Walker” ele me cumprimentou retirando o chapéu, que acabou mostrando um belo cocuruto careca. “Sou Jack Gripsonville, e esta é minha neta, Mariana Gripsonville” ele disse apontando – eu sabia! Era o avô com a neta!

“Muito prazer, senhorita” a cumprimentei, e ela retribuiu.

“Pois então, está aqui de passagem?” o senhor Gripsonville quis saber.

“Sim, viajo bastante. Gosto de conhecer os lugares” – eu me sentia aliviado quando eu podia dizer as verdades... Ou meias verdades...

“Olha só, um aventureiro!”

“Sim.”

“Você tem algum parentesco por aqui? Algum amigo ou família?”

“Não, não que eu saiba...” – mentira!

“Pretende passar muito tempo?”

“Não. Meus planos são de ficar por apenas um curto espaço de tempo e logo partir!”

“E o que lhe trouxe aqui então, rapaz?”

“Bem...” – ok, agora eu teria de ser muito bom na mentira... Ou, manipulá-lo para acreditar. Prefiro a segunda. “Estou de passagem apenas, e vim ver se havia algo que me interessasse na cidade. Gosto da região!”

“Ah sim, claro que gosta” ele caiu certinho. “Houston é uma cidade maravilhosa, e está evoluindo rapidamente! A cidade está crescendo cada dia mais, e isso está sendo um processo muito mais rápido que o esperado.”

“E isso é bom?” fiquei confuso.

“Sim, Deus, claro que sim. A indústria está salvando o Texas, sabe... Estamos nos tornando um Estado muito forte, meu jovem...”

Ótima notícia. Fiquei contente com isso e então voltei minha atenção para a estátua, e a menina, a Mariana, estava lá ao pé dela copiando os dizeres da placa.

“Ah, me desculpe, senhor, mas por que sua neta está copiando tanta coisa no caderno?”

“Mariana está com um trabalho deste nosso herói” ele disse apontando para o meu “eu” de bronze, “Jasper Whitlock.”

“O senhor conhecia a sua família? Sabe de sua história?”

“Bem, sim, sei sim de várias coisas. Todos aqui sabem que ele foi um jovem muito corajoso que deixou a sua casa, sua mãe e amigos para ir lutar pelo ideal da Guerra” – em parte era mentira. Eu não tinha amigos, e o motivo de sair de casa não foi muito bem este!

“O senhor pode me contar mais?”

“Bem, sim, é claro.”

Fomos até um banco ali próximo e sentamos. Mariana estava sentada ao lado de seu avô copiando rapidamente tudo o que o senhor dizia a mim sobre a minha história.

“O rapaz sofreu muito quando pequeno, pois era muito apegado ao irmão, Bryan, que morreu de pneumonia após um trágico acidente...” – sim, agora eu via a cena. O menino lá embaixo no escuro, e sua fraca voz clamando por ajuda. Era meu irmão lá no fundo do poço.

“Ele ficou muito chateado, a família chegou a marcar médicos, mas todos diziam que ele não tinha jeito. Ele não poderia se encontrar com muitas pessoas por que era doente, e se encontrasse, ele poderia atacá-las...” – eu era doente? Ha! Essa foi boa! Ainda bem que o infeliz que inventou isso já deve ter falecido faz tempo!

“A família dele marcou dois casamentos para ele com nobres moças daqui da cidade. A primeira não se familiarizou com ele, mas a segunda senhorita se interessou por ele. E segundo contam, eles tinham gostado um do outro...” – sim, agora me lembro de Duffy. Era uma boa moça, mesmo. Espero profundamente que ela tenha se casado, tido filhos e uma longa e feliz vida.

“Depois, Jasper ficou sabendo da Guerra por seu pai, e resolveu sair de casa para lutar. Alguns dizem que ele deixou uma carta, que a mãe a guardou como se fosse a sua vida, pensando que ele nunca mais retornaria...” – sim, eu também me lembro de escrever a carta, e de deixá-la na sala após sair e deixar a porta aberta. Algo dizendo sobre deixar a tristeza ir embora comigo.

“A coitada da mãe, Mary, ficou extremamente triste, mas se apegou com todas as forças ao resto que tinha de seu filho: aos seus pertences ali deixados para trás e a carta. Ela dificilmente saía de casa, e quando saía, era para ir visitar sua irmã, que era uma professora...” – sim, minha mãe Mary... Deus, ela era tão linda e eu a deixei aqui, sozinha, desamparada. Ela não tinha mais os dois filhos... Eu tinha causado a dor em minha mãe...

Eu era um monstro sem coração!

“Ela ficava esperando na fachada de sua casa, no topo da escada da entrada, toda noite sentada no chão. Ela esperava que seu filho voltasse qualquer dia. E no fim, quando havia acabado de entrar, ela ouviu batidas na porta no escuro da noite. Assustada, ela abriu a porta e deu de cara com seu filho, Jasper. Ela o abraçou e sentiu toda a sua energia recuperar...” – sim, minha mãe me abraçando. Ah, como eu queria que ela fizesse aquilo de novo! Como eu queria sentir aquilo mais uma vez!

“Ela ficou tão feliz que mal notou que havia uma menina com ele, que era da ilha onde ele estava lutando” – sim, Cris... “A menina se chamava Cris, e ele havia se tornado um grande amigo dela. E como ela estava sem mãe e família, ele a trouxe para que a mãe tomasse conta. Ele sabia que ela sempre quis ter uma filha, e então ele quis acertar a conta com sua mãe e dar-lhe uma nova esperança. Uma pequena esperança chamada Cris. Ele conversou com Mary, a deixou e logo voltou para Galveston, mas no caminho foi surpreendido por... hmmm...”

Ah, meu Deus... Eu fui surpreendido por quem? Quem além de Maria, Nettie e Lucy?

“A história conta que ele se perdeu e se envolveu sem querer em uma batalha ali perto, mas muitos negam isso, pois antigamente, os militares tinham o costume de escrever cada passo que davam. Os seus soldados estavam lá perto de Houston em uma base e tinham escrito que ele já tinha saído com um cavalo descansado em direção a Galveston. E o tenente em Galveston tinha escrito que estava o esperando, mas que nunca chegou...” – bom, pelo menos eles não sabem nada das três...

“Nunca acharam seu corpo, nem seus pertences, nem seu cavalo... Nada! Ele virou parte da história local e nacional também, pois foi o Major mais jovem da história do país!” – sim, é verdade, eu era o Major mais jovem dos Estados Unidos. Mas... eu fui tido como o mais jovem por conta dos meus vinte anos ou por causa da verdadeira idade, dezessete?

“Ele tinha quantos anos quando se tornou Major?”

“Vinte” – a idade de mentira!

“Ele acabou sendo exemplo de coragem, simplicidade e humildade. Ele influenciou vários outros jovens a irem para a guerra também. Muitos estavam com medo, mas quando souberam do ocorrido com ele, eles desistiram de tudo e foram ajudar o Estado.”

Ele terminou de contar e eu não pude deixar de exprimir minha satisfação com tudo o que ele tinha falado. Eu estava realmente feliz. Eu tinha errado, mas corrigi o erro. Eu o corrigi com...

“E o que aconteceu com a menina, Cris?”

“Ela foi adotada pelos pais de Jasper, e ela morou na casa dos Whitlock até falecer aos sessenta e um anos por uma doença no coração.”

“Ela ficou com a casa? O que aconteceu com os meus...” oops, “quer dizer, com os pais do Jasper?”

“Eles ficaram todos juntos lá, e viveram muito felizes. Só que o que acontece é que a casa era muito grande, e quando o casal tem apenas uma filha, como no caso deles, a menina não sai de casa para morar com o rapaz. É lógico que se ela quisesse, ela poderia sair, mas ela preferiu ficar e fazer companhia a sua mãe adotiva, Mary, por que o pai, Joseph” – Joe, corrigi mentalmente, “já havia falecido dois anos antes de seu casamento por problemas no pulmão.”

“Ela se casou?” – ela teve uma vida feliz, comum. Era o que eu esperava que ela tivesse tido mesmo...

“Sim, se casou com Frederick Husck quando ainda tinha dezesseis anos e viveram juntos até que o marido faleceu três anos antes dela falecer. Eles tiveram dois filhos, Antônia e Nora. Antônia, como era a filha mais velha, se casou e ficou com a casa. Nora poderia ter ficado na casa também, mas preferiu saiu para morar com seu marido na cidade, pois era um gerente de banco.”

“Interessante” concluí.

“Sim, uma história muito interessante, não?! Magnífica!” ele se maravilhou.

“E a casa? Continua no nome de Antônia?”

“Não. Antônia se casou e teve apenas uma filha, Eva, que ainda mora lá, mas creio que esteja de mudança, pois a casa está muito antiga e recebeu um dia desses um aviso da Polícia local dizendo para se mudar de lá, que a casa pode cair qualquer hora.”

“A casa está caindo mesmo?”

“Sim, e é uma pena. É uma linda casa. Ela é daquelas madeiras antigas, bem resistentes. Todos os móveis ainda são aqueles da família original, de Joseph e Mary. Lá ainda tem o antigo poço e o que restou do estábulo ao fundo.”

“O senhor sabe, por acaso, onde fica a casa?”

“Sim, é indo ao Sul, logo após a placa dizendo que você está saindo dos limites urbanos de Houston. Não é difícil de encontrá-la.”

“Ok, agradeço muito ao senhor, por tudo o que me disse” – pois agora posso encontrar o que eu realmente vim procurar...

“Tudo bem, rapaz. É uma honra falar deste jovem, o Jasper Whitlock, pois sua história está se perdendo. Os jovens de hoje em dia não ligam mais para essas histórias antigas... É uma pena!”

“Sim, é... Mas, mesmo assim, obrigado! E agora eu irei retomar meu caminho...”

“Já vai? Não gostaria de passar a noite em minha casa? Já está tarde! É perigoso!” – ah, mal sabe ele que o maior perigo, na verdade, estava com ele ao seu lado o tempo todo. Agora... pensando bem, eu me mantive tão introspectivo com a minha história, que nem senti sede de seu sangue... Estranho...

“Não, está tudo bem, obrigado. Eu quero conhecer os outros cantos da cidade, ouvir mais histórias. Sou imensamente grato ao senhor, mas quero conhecer mais sobre a cidade!”

“Ok, então, jovem. Você é quem sabe, mas se precisar, minha casa é a terceira virando aquela rua ali atrás” ele disse apontando para a esquina. “Se precisar, é só bater que eu o acolherei!”

“Obrigado” – mas não creio que seja bom ter um vampiro que está ficando com sede em sua casa...

“Bom, então já acabou Mariana?”

“Sim, vovô! Ficou bem grande o meu trabalho!”

“Sim, mas esta é uma história muito comovente. Há de ter todos os detalhes possíveis...”

Ela acenou com a cabeça e então ambos se levantaram e partiram em direção àquela rua que o senhor havia apontado antes. Virei-me e pensei. O Sul está... está... Para lá, conversei comigo mesmo olhando a posição Sul se encontrava.

Eu tinha de encontrar a casa... E Eva.

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