Solitário - Capítulo 55: Partida

1948

Eu estava no meio de uma crise existencial. O que eu sempre tinha feito até pouco tempo atrás, agora eu tomava como erro. Tudo. Exatamente tudo!

Eu continuava a matar as pessoas. Que outra alternativa eu tinha?

Nenhuma!

Vampiros se alimentam de sangue, não de outra coisa qualquer. Eu já tinha tentado outras coisas que não deram certo. Tentei matar com menos frequência, mas a dor, a queimação em minha garganta era excruciante.

A sede era forte demais para nós – forte o suficiente para nos obrigar a fazer coisas que não queremos, como matar pessoas. Quando ela vinha, ela me sufocava. Tudo parecia cair sobre mim, tudo dava errado.

Por fim, eu cedia. Eu matava pessoas.

Mas esta era a ordem natural das coisas.

Vampiros se alimentam de humanos. Os humanos se alimentam para nos alimentar. É a cadeia alimentar. O predador e a caça.

Era impossível mudar isso. Eu já estava conformado com a minha triste e humilhante situação!

Eu não nasci para isso! Para ser esse monstro que sou!

O pouco que me lembro de quando eu era vivo, humano, eu ainda era uma pessoa feliz. Recordo-me da imponente casa em que vivíamos, do jardim em frente a casa, do quintal ao fundo e aos lados grande o suficiente para ficar correndo lá por horas...

Era tudo tão fácil... E, no entanto, cá estou eu, preso a uma espécie que nunca quis ser. E estar aqui em Wichita, Kansas, também não ajuda muito.

Kansas é um estado extremamente agropecuário. São muitas as fazendas com plantações de trigo (o que já lhe rendeu alguns “apelidos” carinhosos pelos empresários) e gado. Isso tudo significava que havia pessoas que moravam nas fazendas, mesmo com as cidades crescendo cada dia mais.

Estávamos perto de uma dessas fazendas onde estava tendo uma festa no quintal, atrás de uma grande casa de madeira amarelada.

Tentei o máximo que pude, mas o cheiro era tão forte. Não consegui me segurar e ataquei um homem que estava sozinho em um dos cantos – eu esperava que ninguém notasse seu sumiço.

Peter e Charlotte apenas ficaram me olhando – eles não falavam mais nada comigo ultimamente. Estávamos tão distantes uns dos outros.

Eu sabia que, no fundo, ainda éramos amigos, companheiros de viagem, mas eles não eram os mesmos... Eu não era o mesmo!

Fomos descansar em uma cidade perto dali, em Clearwater, e então os diálogos irritados começaram com Charlotte e Peter.

“Teremos de viajar de novo?”

“Sim!”

“Quantas vezes teremos de viajar ainda?” ela disse – eu estava sentado encolhido em um canto, a culpa fazendo companhia para mim.

“Sempre!”

“Sempre que alguma coisa acontece, não?!”

“Sim!”

“Peter, faça alguma coisa!”

“Você quer que eu faça o quê?” – eles estavam fingindo que eu não estava ali. Eu estava fingindo que não estava ali, aliás.

“Qualquer coisa! Dê um jeito! Se deixarmos, será sempre assim! Sempre do mesmo jeito!”

“Já tentamos fazer de tudo, minha querida!”

“Por que não o convence a esquecer essa maldita repulsa por sangue logo?”

“Porque já tentei de várias formas!”

Levantei-me e fui andando em velocidade humana para longe. Eu não queria escutar por muito mais tempo – mas a minha maldição audição aguçada insistiu em me fazer escutar a conversa deles.

“Pois então não tentou da forma certa! Deve ter algo que possamos fazer!”

“Não podemos ficar em cima dele, Charlotte. É coisa dele esse assunto de sangue, ele enfiou na cabeça e não tira mais!”

“Peter, você tem que fazer alguma coisa! Tem de ter mais alguma coisa para se fazer a respeito disso!”

“Mas não tem... Já tentamos tudo!”

“Tem de ter sim! Estou cansada de ter de ficar mudando por causa dele. Nem aproveitamos os lugares direito...”

Ok, essa era a minha deixa. Eu tinha de voltar e explicar-lhes o que eu tinha em mente.

“Eu sei, mas temos que entender, querida! Ele está mal...”

“Mas se continuarmos a seguir com essa vida extrema de nômades, vamos conhecer o mundo todo em apenas um ano!”

“Charlotte, por favor, entenda! Jasper está mal!”

“Ele sempre esteve mal, só há pouco tempo é que reparou!”

“Ok, mas ele sempre foi meu amigo, então não posso deixá-lo sofrer sozinho!”

“E com essa amizade você vai acabar com tudo! Vai estragar tudo se ficar perto e não fazer nada, Peter! Meu amor, por favor, faça algo! Tente!”

“Mas o quê?”

“Não sei, faça algo, qualquer coisa!”

“Eu... bem... não sei direito!”

“Mas eu sei!” quebrei a tensão ali no local – ou apenas a instiguei mais ainda. Eles me olharam assustados. Estavam conversando tão distraidamente que realmente não tinham percebido que eu estava por perto.

“Jasper... Olhe...” Charlotte tentou começar, mas não a deixei terminar.

“Não, não, Charlotte. Você tem razão, estive doente por muito tempo, mas só agora aceitei a verdade.”

“Não, Jasper... Charlotte não quis dizer isso!” Peter tentou me confortar. “Não é, querida?”

“Sim, sim, é verdade!”

“Não” eu disse sombrio, “é verdade. Vocês disseram a verdade e eu aceito muito bem isso!”

“Não, Jasper... Escuta, é que...”

“Não, Charlotte, me ouça você!” parei e olhei para Peter, “você também, me ouça! A verdade tinha de ser dita. E finalmente ela foi dita. Ela é a MINHA verdade, não a de vocês! É a minha realidade, portanto não fiquem se sacrificando por mim. Eu vim avisar que...”

“Não, Jasper, olha para mim, por favor!” Charlotte tentou chamar minha atenção, mas eu a ignorei. Continuei apenas falando para Peter – ele entenderia.

“Peter, me desculpe por todo o transtorno que causei a vocês! Por favor, aceite minhas sinceras desculpas! Eu juro pelo que me é mais sagrado, eu sinto muito mesmo!”

“Jasper, eu acredito em você!”

“Aceite minhas desculpas. Por favor.”

“Claro que aceito, você é meu amigo!” – Charlotte estava paralisada apenas observando.

“Obrigado!” o agradeci profundamente, e então olhei para Charlotte. “E a você também, me desculpe por interromper seus passeios!”

“Está tudo bem, Jasper.”

“Ok, obrigado aos dois, mas agora eu tenho de dizer a verdade. A verdade final” – eles dois se entreolharam curiosos, mas amedrontados ao mesmo tempo. Por fim, me encararam. “Eu estive sim doente, e como eu disse, não a encarei enquanto tive tempo para curá-la. Agora, depois de incomodar tanto vocês, eu tenho que seguir o meu caminho!”

Ela percebeu qual era minha intenção – ele já tinha entendido há alguns segundos atrás. Ambos estavam em choque.

“Jasper?...” ela disse com o tom de voz de quem está prestes a debulhar-se em lágrimas.

“Sim.”

“Você... você... não... você... Jasper...” ela estava começando a soluçar. Peter foi ao seu lado e passou a mão em sua cintura a prendendo junto a seu corpo. Ela estava extremamente deprimida, e Peter sabia disso, não era preciso manipular sentimentos para saber disso.

A sua dor da despedida começou a doer em mim. O que ela sentia era mais forte do que Peter sentia – ele estava apenas assustado, mas estava sendo a pessoa que sempre foi, compreensivo.

Charlotte estava começando a se desesperar. Ela abaixou a cabeça e cobriu a face com as mãos. Fui até ela e depositei minha mão em seus finos cabelos.

“Acalme-se!” disse a manipulando – ainda assim doía. “Tudo ficará bem!”

Ela ergueu a cabeça ainda soluçando.

“Jasper...”

Não disse mais nada. Dei um beijinho em sua testa. Fui para Peter e o abracei.

“Obrigado por tudo!” sussurrei realmente grato.

“Eu é que devo agradecer!” ele me respondeu ainda no abraço.

“Até mais!”

“Até mais ver, amigo!”

Desvencilhamo-nos. Dei apenas uma olhada para trás enquanto corria para longe – Charlotte voltara a abaixar a cabeça, e Peter estava com uma mão a segurando nos ombros, enquanto a outra abanava, dando tchau para mim.

Fechei os olhos tentando reprimir tudo o que havia sido dito agora há pouco – eu sabia que a imagem de meus amigos tristes ficaria marcada por toda a minha vida como se fosse uma cicatriz.

Mais uma cicatriz em mim.

Cada hora que eu fechasse os olhos, eu saberia que eles estariam lá, abanando as mãos em minha despedida, em minha partida. E o pior de tudo é não saber se algum dia eu voltaria a vê-los novamente.

Mas eu tinha de continuar, mover-me para frente.

O mundo não podia parar! E mesmo que parasse, eu não podia mais interferir na vida das pessoas, principalmente nas dos meus amigos.

Fui para o Sul.

Eu tinha de encontrar o meu verdadeiro “eu”. Eu tinha de voltar a Houston.

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