Bati de leve na porta, mas alto o suficiente para que a pessoa que estivesse ali dentro escutasse, pois havia um intenso movimento. Fiquei esperando na soleira que alguém atendesse, e uma fina voz feminina gritou.
“Um minutinho, por favor!”
Ok, eu esperaria esse “minutinho”.
Ali parado, comecei a reparar na paisagem e a comparar com as imagens que eu tinha em minha memória. Eram basicamente as mesmas. As plantas ainda eram rasteiras, havia ainda as árvores frutíferas e as que não eram. Alguns animaizinhos, como besouros e formigas, caminhavam por ali também. O antigo poço estava tampado com uma grande e, provavelmente, pesada pedra.
As únicas diferenças eram que, as árvores estavam maiores e pareciam mais cheias de vida – ou pode ser que elas sempre tenham sido assim, era a imagem que eu tinha em mente que estava distorcida – e o estado da casa, que agora já estava escura. Em alguns cantos ela estava em tons mais escuros do que o normal – devia ser algo relacionado a água, pois cheirava a isso... Devia ser algum tipo infiltração ou bolor...
Isso era comum, mesmo em um lugar tão quente como o Estado do Texas.
Ouvi uns passos vindo em direção a porta, e então rapidamente mudei minha postura.
Uma senhorita aparentando ter os seus trinta anos, de expressão carinhosa, cabelos loiros e olhos azuis – ambos da mesma cor e formato que os de Cris – abriu a porta e me recebeu calorosamente.
“Boa noite, em que posso ajudá-lo rapaz?”
“Boa noite, senhorita. Sou Peter Walker, e estou de passagem.”
“E o que precisa?”
“Eu gostaria de saber se esta é a casa da família do homem da estátua na entrada da cidade!”
“Sim, sim, é esta sim!”
“É um prazer conhecê-la, senhorita...”
“Eva, Eva Whitlock.”
“Prazer em conhecê-la senhorita Whitlock” – era estranho chamar de senhorita outra pessoa que tinha o mesmo sobrenome que o meu!
“Por favor, me chame apenas de Eva!”
“Sim, Eva...”
“Bem, venha, entre!” ela liberou a passagem, e eu entrei. Para minha surpresa, os mesmo móveis de quando eu morava aqui ainda continuavam aqui. Apenas algumas coisas mudaram, como o estofado do sofá, o tapete e a posição de alguns objetos de decoração de minha mãe.
Perdi-me com a visão. Aquilo foi emocionante para mim, poder voltar à minha casa. Era como se, finalmente, após quase um século, eu pudesse finalmente voltar para o meu aconchego.
Senti o calor crescer em meu peito. Eu estava em casa. Eu estava onde eu precisava estar, e eu tinha certeza disso!
“Rapaz?” Eva me tirou de meu devaneio.
“Sim, desculpe-me!”
“Claro, à vontade, jovem!”
“É muito... bonito, não?!”
“Sim, é tão linda essa sala... É um dos poucos lugares da casa que minha mãe manteve as coisas de nossos antepassados, sabe?!”
“É? Por que o resto mudou?”
“Ela dizia que se sentia chateada deixando as coisas como estava há décadas. Ela resolveu mudar algumas coisas de lugar então, como a cozinha e alguns quartos, mas não foi nada ao extremo!”
“Sim, percebo!”
“Como? Desculpe-me?”
“Ah, quer dizer, é boa uma mudança de vez em quando, não?!”
“Bem, sim, de vez em quando... Desculpe-me a arrogância, por favor, mas o que faz por aqui? Como chegou a esta casa?”
“Eu estava de passagem por aqui, na região, e resolvi parar, sabe?! Entrei e vi aquela estátua de bronze, e então conheci um senhor que estava contando a história do homem para sua neta. Eu pedi para que ele me contasse também, e então fiquei curioso e vim ver a casa.”
“Sim, Jasper Whitlock.”
“Ele mesmo!”
“Venha, sente-se” ela disse apontando para o sofá, e então segui seus passos e sentei em uma das poltronas macias. “Sabe, ele foi um membro desta família, os Whitlock. A família deles era bem conservadora na época, mas também eram muito simpáticos. Mais do que os demais daqui da região. Eles eram famosos na época. Todos gostavam deles!”
“Sim, ouvi algumas histórias também por aí...”
“É. Foi Jasper quem trouxe minha avó para cá, sabe... Ela era de Galveston, morava no Norte da Ilha, mas na Guerra toda sua família foi morta, e ela não tinha mais com quem ficar. Aí conta a história de que, quando os soldados de lá trouxeram as mulheres e as crianças para a base deles para trazê-los para cá, para Houston que não estava em Guerra, ela não conversava com ninguém, mas acabou fazendo amizade apenas com uma pessoa.”
“Com Jasper!” – comecei a me lembrar de tudo o que havia realmente acontecido. Cris estava sentada cabisbaixa em um canto do quintal da base, e então fui conversar e depois pedi aos outros soldados comida para lhe dar.
“Sim, ele foi a única pessoa que a compreendeu. Ele sempre foi uma ótima pessoa, minha avó dizia a minha mãe... Minha mãe, Antônia, me conta as histórias até hoje. Ela sempre se lembra de algo, sabe?!”
“Você gosta dessas histórias?”
“Sim, gosto das histórias da família e do Jasper” – Jura? Eu sei de várias, inclusive de terror... “Gosto da história da minha família. Dessa família em específico, quer dizer...”
“Como assim?”
“Se não fosse por Jasper, creio que eu não estivesse viva. Minha avó teria ficado para morrer de fome, se é que não fosse morta entre os combates com as bombas, as metralhadoras... Ele a salvou e salvou toda a geração seguinte. Eu tenho de ser grata a ele por isso” – de nada, disse mentalmente.
“Ele fez isso mesmo?” – eu sabia que eu tinha feito, mas eu estava gostando de ser elogiado por uma descendente da minha pequenina e indefesa Cris...
“Sim, ele salvou não só a minha avó, Cris, como a família dele também!”
“Por que acha isso?”
“Por que a mãe dele gostava de escrever e ler as coisas, mesmo que escondido de seu marido, pois ele achava que mulheres não tinham de saber essas coisas... Essas coisas pertenciam apenas aos homens, e apenas algumas mulheres tinham acesso à leitura.”
“A tia de Jasper sabia, não é?!”
“Sim, como sabe?!”
“Ouvi bastante dele por aí!”
“Bem, sim, a tia dele, a Berry, era a sua professora particular.”
“É mesmo, tia Berry” disse em tom mais introspectivo do que eu deveria permitir transparecer, mas ela pareceu não perceber isso.
“Isso. A mãe de Jasper, Mary, gostava de escrever, e quando Jasper saiu de casa deixando-lhe uma carta, ela ficou muito triste, e então para aliviar sua tristeza, ela escrevia cartas para sua irmã que tinha se mudado do campo para a cidade.”
“Você tem essas cartas?”
“Não, não, na verdade... Elas ficaram com a tia de Jasper, e ninguém sabe onde elas foram parar. Alguns dizem que ela as enterrou, outros dizem que ela as queimou, mas ninguém sabe o porquê, o motivo.”
“Ahn, que pena!”
“Você se interessa por essas coisas? História?”
“Sim, eu gosto de... de histórias locais, sabe...”
“Hmmm... isso é muito legal, sabe, conhecer os lugares. Também gosto muito, mas prefiro ficar aqui cuidando de minha mãe que está enferma.”
“O que ela tem?”
“Ela está com problemas no coração, assim como a minha avó, sabe... O doutor da cidade disse que ela não tem cura, então estou passando o máximo de tempo que eu tenho para ficar ao seu lado. Enquanto meu marido trabalha na cidade e volta apenas de noite, eu fico aqui com minha mãe.”
“Você é casada?”
“Sim.”
“Ele também é Whitlock?”
“Não, é Grayflier, mas o padre que realizou a cerimônia deixou que eu escolhesse o sobrenome a ser conhecida, pois a família Whitlock é conhecida aqui. Então preferi manter o sobrenome de solteira, mesmo estando casada.”
“O que seu marido faz?”
“Ele é professor de História em uma Universidade. Ele ensina várias coisas de nossa família, os Whitlock, sabe...”
“Legal, muito legal mesmo...”
“Sim. Hmmm... Peter, não é mesmo?”
“Sim.”
“Peter, aceita um chá? Algo para comer?”
“Ahhh... não, muitíssimo obrigado” – fiquei enjoado com a lembrança do que me aconteceu na última vez que engoli água...
Ela se levantou, foi até a cozinha e logo voltou.
“A carta de Jasper você tem acesso?”
“Não, não mais... Vários objetos da já foram doados ao museu de Houston. A carta está em exposição lá protegida por uma cúpula de vidro.”
“Você já a viu?”
“Sim, é linda a letra que ele tinha. E ele sabia como escrever. Era bem... poético, mesmo que trágico!”
“O que dizia a carta?”
“Ele andava muito triste desde a morte de seu irmão mais velho, Bryan, e muitos diziam que ele estava doente, mas na verdade ele não estava” – finalmente alguém me entendesse. Eu realmente não estava doente! “Ele só estava em luto ainda, mesmo após anos. Ninguém o entendia, e muitos o pressionavam. Isso só piorava a situação. Alguns médicos diziam que ele nunca mudaria, que nunca ficaria bom, e isso só deixava sua mãe mais triste ainda.”
“Mas ele nunca soube que as pessoas falavam isso dele, não é?!”
“Não, ele não ligava para o que os outros faziam ou pensavam em relação a ele. Ele era muito independente e responsável. Um exemplo de moço para todos os moços hoje em dia!”
“E o que mais havia na carta?”
“Ele disse que estava indo embora lutar, e que procuraria não voltar, se me lembro bem. Chegou até a dizer que deixaria a porta aberta para levar consigo toda a tristeza da casa. Por um lado isso foi bom, por que mostrava que ele se preocupava com sua mãe, mas... por outro, aquilo foi trágico, digno dos contos de romance dramáticos.”
“O que mais você sabe sobre ele?”
“Mais ou menos o que todos sabem... Que ele era um menino muito inteligente, mas odiava contas. O negócio dele era História. Ah, como ele adorava, me disse minha mãe... Ele era péssimo em Álgebra, Alquimia, Astrologia... essas coisas, mas em História ele era o melhor!” – sim, odeio números até hoje! “Ele também deixou alguns de seus pertences aqui quando saiu...”
“Esses pertences dele continuam aqui?”
“Sim, o quarto nunca teve nada tirado do lugar depois que ele saiu. A mãe dele fez questão de passar para Cris que as coisas deveriam permanecer naquele lugar. Cris, por sua vez, sempre ensinou a minha mãe o mesmo, que também me ensinou.”
“O quarto está aberto, então?”
“Sim, claro! Sempre vou quando posso lá. Adoro a vista que temos da janela!” – sim, era uma das coisas que eu mais gostava também...
“Posso ir dar uma olhada depois? Eu gostaria de conhecer!”
“Claro! Será um prazer levá-lo até lá... É maravilhoso ficar lá, é tão bom, sabe... Você se sente tão bem lá no quarto dele... É como se estivesse no lugar certo” – sim, eu entendo! “É como se você acabasse que por sentir a presença do Jasper lá dentro. Você se sente cheia de compaixão, de carinho, honestidade... Jasper sempre foi corajoso e honesto com os obstáculos. Ficar lá em seu quarto, não sei, parece que faz com que você sinta o mesmo!”
“Sei... eu gostaria muito de entrar lá e ficar alguns minutos, se você não se importa!”
“Não, claro que não me incomodo, você pode ficar lá o tempo que quiser... Sabe, ele se parece muito com você!”
Oh ow...
“Comigo?”
“Sim, muito mesmo, sabe?!”
“Nossa... quanta honra!” – mal sabe ela que o Jasper de que tanto ela fala, na verdade sou eu! Ah, se ela soubesse... Ficaria louca!
“Ah, Peter. Você tem onde passar a noite?”
“Não...”
“Pois então fique aqui comigo esta noite, pelo menos. Meu marido não virá está noite, pois terá aula amanhã de manhãzinha, então está hospedado em um hotel vizinho da Universidade. E está escuro demais para um jovenzinho como você sair por aí andando. Pode ser perigoso!” – ela me lembrava a minha mãe também... Deus, que saudade!
“Não, eu... não...” tentei argumentar contra.
“Por favor, é perigoso lá fora. Ficamos sabendo de alguns assaltos recentemente à noite, então você não tem mais alternativa. Você terá de ficar aqui... É pelo seu bem, jovem...”
“Mas...”
“Pode ficar com o quarto de Jasper, se quiser. Gostei de você, e algo me diz que você não estragará ou tirará do lugar os pertences dele, pelo menos por enquanto você não pode tirá-los...”
“Não, claro que não, mas... por quê?”
“A casa está com a estrutura fraca, e não tenho dinheiro o suficiente para reforçá-la, então estou embrulhando os antigos pertences para fazer um leilão com as famílias mais nobres e tradicionais daqui da cidade!”
“Por que as tradicionais?”
“Porque, por causa do Jasper, esta casa e seus pertences são valiosos aqui. A família acabou se tornando mais famosa do que já era na época, então não é nada mais justo do que manter os objetos com pessoas que sabemos que vão cuidar deles!”
“Ah... e não tem como não vender?”
“Não, precisamos de dinheiro para ir para a cidade também. Então, esse é o jeitinho que arranjamos. Não queríamos fazer isso, mas não temos alternativa...”
“Ah...” – agora eu tinha ficado chateado, realmente chateado...
“Então está tudo em perfeita harmonia por aqui. Já está tarde, estou cansada e acho vou me deitar. Vou levá-lo ao quarto e depois irei me deitar, tudo bem?!”
“Ah... eu...”
“Se estiver com fome, pode vir até a cozinha, que fica ali naquela porta” ela disse apontando. Segui sua mão e vi que a porta ainda era a mesma. Os mesmos entalhes e maçaneta. “Pode pegar o que quiser, e sinta-se à vontade!” – ‘a casa é sua, literalmente sua!’ só faltou isso para ela adicionar...
“Acompanhe-me” ela disse já subindo as antigas escadas, que agora rangiam mais do que quando eu vivi aqui. Fui passando pelas portas no corredor, e fui me lembrando do que havia dentro deles na minha época. O quarto de meus pais, alguns sem uso, o de hóspedes, o de Bryan e, finalmente, o meu.
Ela girou a maçaneta e abriu a porta. Entrei e tudo estava realmente do mesmo jeito que estava antes.
“Se precisar de algo, é só me pedir. Na banqueta há mais lençóis para se esquentar.”
“Obrigado!”
“Tenha uma boa noite!”
“Obrigado, para a senhorita também!”
Ela fechou a porta e então me sentei na ponta da cama. Eu me lembrava de tudo agora. Absolutamente tudo. Mas eu tinha de fazer algo ainda, eu sentia que tinha de fazer algo ainda!
Havia algo a ser encontrado, e eu passaria a noite toda procurando. Amanhã pela manhã, assim que Eva acordasse, eu iria conversar sobre o leilão, diria o que eu pensava a respeito e depois partiria. Eu seguiria em frente apenas quando me fosse permitido.
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