Eu não precisaria dos lençóis, nem de mais nada além do que eu estava procurando. Só havia um pequeno problema: eu não sabia o que eu deveria procurar.
Fui até o antigo baú. Abri sem muita dificuldade, mas percebi que ele não abria há muito tempo. Fui puxando alguns pedaços de brinquedos, e então eu encontrei lá o que deveria estar procurando.
Havia um livro de capa de couro bege. Ele estava sujo, mas o limpei em minha camisa, e vi que era o meu diário. O livrinho que eu escrevia às vezes quando era pequeno... Quando eu era mais velho também...
Enfim... Resolvi o folhear.
Tudo estava lá, e aquilo fez com eu atingisse o máximo da nostalgia. Se eu pudesse chorar, eu já estaria com o rosto todo molhado. Isso me envergonha, mas é a verdade, e eu estava grato por ninguém estar dividindo esta cena neste quarto...
Em cada página amarelada, eu encontrava a data na parte superior. Logo abaixo, eu escrevia em resumos rápidos o que aconteceu nos devidos dias anunciados.
Nunca gostei muito de escrever, para ser sincero, mas eu falava apenas o que eu precisava expressar. Aquelas coisas que nenhuma mãe deixaria um filho falar, sabe?!
Continuei folheando tentando afastar a dor em meu peito. Eu era feliz e não sabia.
Quando pequeno, eu apenas queria ser uma boa pessoa. Nada mais, nada além. Não me importava com a minha profissão, se casaria ou se teria muitos filhos. Isso não me interessava... Eu só não queria ter pensado assim, pois agora, é desta forma que me encontro. Sem trabalho, mulher e filhos...
Não posso dizer que me sinto feliz da mesma forma que eu achava que seria... A realidade é muito mais cruel do que quando imaginamos a situação. Eu prefiro o mundo da fantasia, onde tudo o que machuca, na verdade, não dói...
Fiz esta metáfora, pois escrevi algo relacionado a alguma história que minha mãe tinha lido para mim e meu irmão em um lindo dia de Sol, embaixo de um grande e majestoso pé de toranjeira.
Naquele tempo eu ainda podia sair no Sol sem me preocupar em brilhar, em chamar a atenção. Eu era uma aberração do mundo hoje, e minha mãe teria horrores se me visse. Eu só esperava que, sendo o amor em pessoa como ela era, ela fosse um anjo que protegeria a mim e a família de Eva.
Era a única coisa que precisávamos!
Comecei a sentir sede. A queimação em minha garganta começava a tomar um nível bem mais alto do que eu já pude aguentar. Se não fosse tão doloroso como estava se tornando, provavelmente eu ficaria brincando que eu estava batendo o meu recorde.
Mas a minha situação não era favorável, ainda mais com uma descendente de Cris a poucos passos de onde eu me encontrava!
Eu tinha de dar um jeito nisso. Abri a janela e a prendi aberta com os fechos laterais. Saltei para fora, eu teria de dar um jeito de me alimentar o quanto antes, e teria de me contentar com pouco! Ou, pelo menos, com o suficiente!
Não precisei ir longe para encontrar comida. Dois bêbados estavam caídos batendo as garrafas em tom de brinde. Eles estavam quase que inconscientes, e isso estava a meu favor.
Eles eram a minha caça, e eu era o caçador. Nada poderia mudar o destino dos dois. Eles eram apenas dois infelizes entregues à morte. Eu era a morte. Eu decidia se eles viviam ou morriam.
Eu era uma má pessoa, mas já estava me conformando com o fato... Não havia nada mais a se fazer...
Não poupei esforços, não queria demorar a voltar ao meu quarto. Simplesmente cheguei em minha velocidade vampírica até eles, que reparou a minha existência fora do comum, e ficaram assustados. Muito assustados, só não conseguiam correr.
Pude sentir que os pelos de suas nucas se eriçaram. Era assim que a caça reagia ao seu caçador. Este era o alerta, e eles estavam totalmente inertes a ele. Se pudesse fazer algo, se estivessem conscientes, tenho certeza absoluta que eles correriam com o máximo de força que pudessem.
Mas isso não ocorreu.
Cravei minha mandíbula. Pelo pescoço, eu atingi a veia que direciona todo o sangue para a cabeça, a carótida, a melhor veia que um vampiro pode atacar. Ela era o sonho desses... monstros... como eu!
O seu corpo ficou imóvel no chão, e então parti para o próximo. O outro nem se manifestou contra, o primeiro pelo menos tentou lutar contra no começo.
O líquido quente era transferido do corpo do homem para o meu. Senti que minhas forças, energia estavam se completando novamente. Isso era uma sensação boa, mas que duraria pouco. Em breve, toda a dor e o pesar pelo meu ato voltariam com força contra mim...
Peguei os corpos sabendo que eu tinha de dar um fim neles. Levei-os para fora da cidade, e os enterrei perto de uma árvore. Se eles tinham alguém, família, pelo menos iria demorar a encontrá-los. E este seria o meu tempo útil de estadia.
Eu não queria me expor mais do que eu já estava disposto. Eu continuava aqui por apenas uma razão, uma única razão: saber qual seria o destino de minha antiga casa, os pertences da família e pegar o meu antigo diário de quando eu ainda era menino – ou humano, como preferirem...
Voltei para a casa de meus pais. Entrei de novo pela janela frontal, a do meu antigo quarto, mas não havia sinal de movimento pela casa. Todas estavam dormindo tranquilamente – Eva e sua mãe que está de cama. A respiração tranquila das duas e o silêncio da casa me convidavam para uma voltinha aos cômodos.
Saí de meu quarto e fui para o corredor, eu queria dar uma olhada no resto da casa.
Bem, o quarto dos hóspedes nunca me agradou, então não quis perder tempo. Fui em direção ao cômodo de onde vinha a respiração das duas mulheres, o quarto de meus pais.
Abri a porta vagarosamente tentando não fazer qualquer ruído que fosse. Se Eva me pegasse acordado em seu quarto no meio da noite, o que pensaria? Isso não seria bom, ainda mais ela não sabendo que a casa, na verdade, é minha. Minha antes mesmo de ser dela!
O assoalho era o mesmo, como em todo o resto da casa. As paredes receberam apenas uma demão de tinta desde quando saí, mas era o mesmo tom de quando eu ainda morava aqui.
Alguns móveis ainda continuavam lá no mesmo canto que minha mãe gostava de deixá-los. Muitos deles, aliás, estavam em bom estado de conservação. A madeira não aparentava ter sinais de riscados nem buracos causados por pragas. O estofado da poltrona de canto, na qual eu fiquei sentado por algum tempo, tinha algumas manchas amareladas, mas nada que atrapalhasse a visão das flores vermelhas e rosas que minha mãe tanto amava...
A penteadeira estava no mesmo lugar, mas o espelho tinha sido trocado recentemente. Este era novo e tinha uma boa visão, enquanto os antigos eram turvos. A gente não enxergava perfeitamente antigamente!
Os lustres, os castiçais, tudo estava igual. O guarda roupa tinha tomado espaço de uma grande parede, mas não me incomodei com ele – ele não veio da minha família e não cobriu algum desenho bonito da parede.
Resolvi deixar o quarto para trás – eu já tinha ficado tempo demais por lá. Estava amanhecendo e se eu continuasse lá, Eva poderia acordar e levar um baita susto comigo. Poderia até me expulsar de minha própria casa.
Desci para a sala e depois fui para a cozinha dar uma olhada. Algumas coisas continuavam do mesmo jeito, outras não, mas agora eu já não tinha mais tempo para ficar reparando nesses detalhes.
Dei-me conta de que o dia já tinha nascido por completo somente quando ouvi passos descendo as escadas. Eva me encarou com uma cara péssima – a cara de quem acorda após uma longa noite de sono mal dormida.
“Bom dia!”
“Belíssimo dia!” respondi tentando a animar, então resolvi manipular seus sentimentos.
“Nossa... de repente, nossa...”
“O que?” me fiz de inocente, afinal, ela não sabia de nada mesmo!
“Ai ai, me sinto tão bem hoje! E foi bom eu acordar assim, sabe?! É que vai ser hoje o leilão com as demais famílias antigas da cidade. Precisamos vender tudo...”
“Não tem como não vender mesmo?”
“Não, Peter... é triste, mas não temos alternativa!”
“Mas por que, afinal das contas, vocês precisam se mudar?”
“Por vários motivos: recebemos um aviso para deixar a casa, pois ela pode cair a qualquer momento, mas o mais engraçado é que não sentimos ou vimos qualquer motivo físico para deixá-la...”
“Então por que vender?”
“Mas esse não é o único problema...”
“E qual é o outro?”
“Os impostos estão caros, e estamos com muitas dívidas na família...”
“E se... e se eu falasse com a pessoa que cobra esses impostos de vocês para amenizarem?”
“É impossível, já tentei uma vez...”
“E o que a pessoa disse?”
“Que eu era uma pessoa muito carismática e simpática, mas que isso não pagava as nossas contas!”
“Isso é patético! Eu darei um jeito, não se preocupe!” – eu fiquei chateado com a venda de minha casa. Ela era a única coisa que eu tinha e ainda queriam tomá-la de mim... Ha! Eles só irão tomá-la se passar por cima de meu poder, até porque de meu cadáver não tem como eles passarem...
“Não, Jasper, você só irá piorar as coisas” – como ela sabe? Ele mal me conhece!
“Não posso nem tentar?” tentei argumentar contra.
“Você não precisa se incomodar...”
“Incomodar mais? Eva, isso é o mínimo que eu posso fazer já que você me deu local para passar a noite. Não posso te dar nada em troca!” – afinal, você também é parte da minha família...
“Mas... Ah, não sei, Jasper...”
“Deixe-me tentar, pelo menos!”
“Olhe, realmente não sei, eles não são pessoas fáceis de lidar!”
“Não se preocupe com isso!” – pois eu sou um vampiro e sei manipular as emoções, baby, acrescentei mentalmente.
“Ok, então irei com você!”
“Hmmm...” comecei a fazer uma careta. Ela não precisava ser teimosa assim! Não comigo!
“Jasper, por favor, somos nós quem moramos nesta casa, portanto, quem tem de ir lá sou eu. E já que você está querendo tanto tentar, eu irei junto!”
“Ok, então... Que horas partimos para a cidade?” a questionei.
“Assim que eu der o remédio para minha mãe e terminar de me arrumar” ela disse mexendo em algumas coisas que fediam de um... de um... sei lá, um negócio grande bege que, quando aberto, saía um ventinho frio... “O que prefere para o café da manhã?”
“Eu?... Ah, não, não, obrigado, não estou com se... fome!” – quase!
“Saco vazio não para em pé! Vai, me diz do que gosta!”
“Ah... Não estou com fome agora, mas eu poderia comer algo depois quando estivesse...”
“Ok, então... Se acha melhor assim!” ela disse e já se dispôs a mexer em algumas panelas e frigideiras. Ela quebrou um ovo e fez uma omelete, que cheirava muito bem, aliás. Depois passou um pouco de manteiga em um pedaço de pão, e se sentou para comer tudo com um copo de suco de laranja.
Enquanto comia, íamos planejando o que falar com o prefeito da cidade.
...
“Bom dia, queremos falar com o prefeito Roadwood!” Eva pediu a secretária, uma mulher roliça de cabelos presos. Ela revirou a boca em sinal de reprovação, mas ela não me assustava...
“E quem deseja?” a ignorante sentada atrás da mesinha perguntou.
“Eva Whitlock e Peter Black.”
“E qual o assunto?”
“É a respeito da nossa casa, e precisamos ver se...” – a criaturinha redonda interrompeu Eva... Eu não gostei dela!
“Então não tem mais o que conversar, senhora Whitlock. Tudo já foi passado para a senhora há muito tempo, e você apenas tem de cumpri-las!” – eu realmente não gostei da secretária.
“Mas é rápido...”
“O prefeito está ocupado no momento!”
“Ok, qual seu nome?” perguntei-a.
“Por que quer saber?”
“Só quero saber!”
“Amanda Bradley.”
“Muito prazer, senhora Bradley” ofereci minha mão para cumprimentá-la, sem me preocupar se ela acharia que minha mão estava fria ou não. Ela retribuiu o aperto de mão, e essa era a minha deixa. “Nós gostaríamos de entrar e falar com o prefeito. É urgente!”
Ela ficou atordoada, mas então respondeu.
“Sim, claro, por aqui!” ela se levantou e foi em direção a um corredor atrás de uma porta. Pusemos-nos a segui-la, e então chegamos a uma porta de mogno bem trabalhada. Ela a abriu, o que nos mostrou uma bela sala de reunião com apenas um senhor sentado em uma das pontas. O prefeito, provavelmente.
“Sim, senhora Bradley?” o prefeito disse.
“Eles precisam falar com o senhor com urgência” ela disse ultrajada, “e como o senhor está aí sem fazer nada mesmo!!!”
“Ora, mas como se atreve? Em anos de trabalho nunca fez algo assim, Amanda!”
“Bem, estou sendo inteligente desta vez!”
“Está sendo inteligente e também demitida! Nunca mais volte aqui!” – ele apertou um botãozinho em um aparelho branco e chamou alguém. Ele apenas ficou nos encarando até que a pessoa chegou e levou a senhora para longe. Outro homem de terno também quis nos levar, mas só conseguiu arrastar alguns centímetros Eva... Eu continuei no mesmo lugar como se ele sequer tivesse tocado em mim.
Continuamos na sala.
“Precisamos falar com o senhor!” – fui a sua direção, e quando estava bem próximo, o manipulei para uma resposta positiva.
“Claro! Você” ele disse ao homem, “pode ir.”
Eva ficou boquiaberta. Preferiu não dizer nada, só observou o que houve a seguir.
“Prefeito, o senhor não pode despejar a família Whitlock de sua morada! A casa é um antigo bem da família, e assim deve continuar! Qual a sua opinião?”
“Eu concordo extremamente com o senhor, senhor...”
“Black.”
“Senhor Black, eu concordo. Escreverei agora mesmo uma carta de retirada da demolição da casa...”
“Só da demolição?”
“O que mais quer? Pode dizer por que eu posso fazer tudo, senhor Black! Tudo o que eu quiser!”
“Então escreva em um papel o que eu lhe falar o que é melhor para esta família!”
Ele concordou com o que eu disse, pegou um papel, pegou uma caneta e um tinteiro. Começou a molhá-la e então olhou para mim esperando que eu lhe ditasse o que deveria ser feito.
“Como símbolo cultural e histórico, a antiga casa dos Whitlock passará por uma reforma. A casa não será mais demolida, e será o novo museu da cidade. Tudo pertencente à família de 1860, de quando se conta a história, deverá permanecer lá e ser protegido não só por forças humanas, mas pela lei também! Os residentes atuais deverão se mudar para uma linda e confortável casa na cidade, sendo que esta deve se encontrar perto de um hospital e escola para as futuras gerações. As dívidas da família devem ser extintas.”
Pausei para ver se ele tinha me acompanhado.
“Agora assine embaixo.”
Ele assinou e pediu pelo aparelho branco que outra pessoa viesse à sua sala novamente. Outro homem de terno escuro entrou.
“Faça uma cópia desse papel e distribua a todos os secretários e políticos. O que está aqui deve ser posto em prática desde já!”
O homem concordou e pôs-se a retirar.
“Obrigado senhor prefeito!”
“Eu é que agradeço por me fazer acreditar no que é melhor para a cultura de nossa cidade. A história deve ser preservada!”
“Sim, deve mesmo!”
“Senhorita, se preferir, pode ir comigo escolher a sua casa agora mesmo. O que acha?”
“Eu... eu... eu... não... sei...” ela estava insegura, mas estava confusa acima de tudo!
“Pode confiar nele, Eva!”
“Como conseguiu fazer isso?”
“Carisma! Nunca lhe disseram isso?”
“Sim, minha mãe dizia para mim quando eu era pequena.”
“Pois a mim também diziam... Engraçado, não?!”
“Bem... sim...”
“Ok, então... Boa sorte” fui até ela e apertei sua mão, enviando-lhe uma onda de otimismo e confiança. Ela mudou de posição, inflou o peito e uma fisionomia mais alegre iluminou seu rosto. “Cuide de sua mãe e de seu marido. Passe bem aqui em Houston. Agora está na hora de partir...”
“Ah não... Precisa mesmo? Não tem tempo nem para um chá? Você nem tomou seu café da manhã!” ela se preocupou.
“Tenho ainda ele embrulhado em seu lenço, Eva. Se não se importar, posso ficar com ele, então?” – afinal, o lenço dela era o mesmo lenço bordado com rendas nas bordas de minha mãe.
“Sim, claro, desde que tome seu café quando precisar!”
“Sim, tomarei!” – nossa, estou me superando nas mentiras!!! “E não se esqueça de cancelar o leilão!” Ela concordou com a cabeça.
Desfiz-me do cumprimento e saí da sala, olhando para dentro enquanto ainda fechava a porta. Tudo estava bem novamente. Meus familiares iriam agora morar na cidade com conforto e com tudo o mais que precisassem. Minha casa se tornaria uma propriedade histórica, e seria um museu. Tudo lá permaneceria intacto, e nada mais seria espalhado por aí...
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