Solitário - Capítulo 21: Ruína

Então apenas saí e fui de volta ao alojamento. A maioria dos soldados ainda estava acordada, alguns jogando baralho, outros apenas fumando. Eu tinha de perguntar a todos para saber quem iria gostar de me acompanhar, mas, preferi fazer algo primeiro. Fui em direção a apenas um, ao único que me compreenderia e concordaria no que fosse preciso, seja lá que situações enfrentaríamos pela frente: Julio, meu grande amigo.

Cheguei e parei em sua frente, tentei não parecer nervoso, amedrontado, mas a ideia de ter de voltar ao mesmo local de partida não me agradava, e incrivelmente, por todo o caminho que percorri até Julio, os que estavam fazendo alguma coisa, pararam apenas para me olhar passar, como se eu fosse parte de uma nova exposição de arte.

Eu sentia cada parte de meu corpo tremer toda vez que pensava em Houston, ou então cada vez que os rostos de meus pais e meu falecido irmão voltavam a minha mente. Eu estava sofrendo, e eu não gostava disto, de me sentir assim, tão fraco, tão vulnerável. Eu aprendi com o tempo a reprimir os meus mais profundos sentimentos, principalmente aqui, num lugar onde disciplina, ordem e controle devem ser os maiores companheiros dos soldados.

Busquei forças para sair deste devaneio, e então encarei Julio. Abaixei-me, ficando face a face com ele, pois ele estava sentado na lateral de sua cama. Ele me olhava nervoso, ou seria ansioso pelo o que eu tinha de contar a ele?

“Julio” lhe disse sussurrando, “eu poderia falar com você por um minuto?” Eu não queria criar alarde por tudo o que haveria de acontecer ainda, eu sabia que recuar as pessoas de seus lugares era só um passo de toda a caminhada dolorosa da guerra. Eu sabia que evacuar pessoas significava que a batalha só tendia a fixar cada vez mais árdua, sangrenta, e que isso era apenas uma pequena tentativa de salvar os que podiam ser salvos – ou seja, todos menos os soldados guerrilheiros.

“Claro” ele concordou logo que terminei.

Ele se levantou e caminhamos lado a lado até a porta, apenas a abri e fiz sinal para que ele passasse primeiro. Quando eu saí, ao fechar a porta, dei mais uma espiadela do que estava acontecendo lá dentro: havia nervosismo, preocupação, obviamente. Todos estavam ansiosos por saber o que estaria por vir, e sempre que eu voltava das reuniões, eu gostava de encontrar todos reunidos para que eu os pudesse alertar do que estava sendo feito ou não.

Eu não gostava que erros fossem cometidos, eu não aceitava muito esse tipo de coisas. A guerra não aceitava esses tipos de coisas. E eu estava cansado de ver pessoas morrer sem ter a mínima parcela de culpa.

Fechei a porta e fui caminhando com Julio, ambos em silêncio, até o quintal do galpão. No caminho, não resisti e olhei para a sala do tenente-coronel Jackson, e vi que a luz ainda estava ligada. Provavelmente, ou eles estavam discutindo um assunto muito sério pela postura dos soldados que eu via pela sombra na janela, ou eles estavam todos quietos, parados apenas pensando. Eles não falavam em voz alta, não dava para escutar um milésimo de som que havia ali dentro, mas isso não fazia diferença, pois se eles não estavam discutindo, eles apenas ficavam quietos mesmo... eu já sabia disto por conta das reuniões anteriores...

Era depressivo ficar ali... por momentos, eu podia perceber claramente o que cada um deles sentia... havia dor e sofrimento em todos, imagino que seja por conta das mortes em vão, seja ele soldado ou civil, tanto faz, é um americano a menos no país.

Creio que, depois de tudo o que vi e ouvi naquela pequena sala, poucos de nós queríamos realmente aquela guerra. Ela, aliás, estava sendo prevista para demorar apenas três meses. Já se passaram dois e nada sobre o fim da guerra está sendo comentado por entre os experientes.

A guerra está nos causando muito, nos afetando muito. Custa a nós, como o mínimo que há para se fazer, salvar o máximo de almas possíveis. E foi para isso que eu vim aqui ter esta conversa com Julio.

Chegamos ao quintal, mas não parei, apenas ele parou por um instante e então recomeçou para me acompanhar. Fui até uma árvore que estava perto do galpão, o sol apontava que estava muito cedo ainda, e sentei ao pé, Julio, sentando ao meu lado.

“Julio, eu... eu não sei como te dizer isto, mas apenas espero que você ouça o que tenho para lhe dizer...” eu tinha que falar a verdade, eu tinha confissões a fazer a Julio, eu devia isto a ele.

“Não se preocupe Jasper, você sabe que pode falar o que quiser comigo!” – sim, este era o Julio, meu grande amigo sempre simpático e acolhedor.

“Obrigado...” e então apenas fiquei olhando para frente, eu não queria que, quando os soldados da alta patente saíssem me vissem neste estado emocional, seria minha ruína.

“Então... o que tem para falar?” Julio me pressionou.

“Bem, você sabe que a guerra não está indo muito bem por hora, estamos perdendo território, nossos campos estão sendo vigiados e até infiltrados, sim, houve espiões em uma das bases do Norte” – o respondi, pois ele me olhou com admiração, espanto em seu rosto, – “todos os soldados estão preocupados em treinamentos, em armas e munições, em táticas para avançar, no que fazer se for preciso recuar... há tantas coisas para se pensar, e mesmo assim há tantas coisas que ainda esquecemos, deixamos para trás...”

Eu não sei quanto tempo mais eu conseguiria me torturar daquele jeito, eu teria de contar o quanto antes tudo para Julio, ele tinha de saber para me ajudar... se ele pudesse me ajudar...

“O que eu quero dizer é... bem, eu conversei com nossos superiores na sala do tenente Jackson, e como uns disseram que a guerra estava pior no Norte, propus para que houvesse a evacuação das mulheres e crianças de lá. Os homens que ainda permanecerem por lá, terão de arranjar um jeito de se despedir de sua família e depois ajudarem em alguma coisa na guerra. Esta guerra está se tornando ampla demais... ela não deveria tomar esta proporção tão gigantesca e assustadora, ela não deveria demorar mais tempo do que o previsto...” eu estava nervoso, e estava apenas regurgitando tudo aquilo que estava no mais escuro dos buracos de minha mente.

“Eu... eu... eu queria apenas saber uma coisa de você Julio...”

“Pois pode me perguntar Jasper...”

“Eu queria saber se você poderia me acompanhar nesta viagem... a de escolta e evacuação de mulheres e crianças para... para uma outra cidade...”

“Claro, você pode contar comigo Jasper... conte para o que precisar...” – eu estava grato por sua compreensão, – “e que cidade seria esta, então?” ele chegou ao meu ponto fraco, ao meu calcanhar de Aquiles...

“Bem...”

“Algum problema?”

“É Houston... é... bem... longe daqui, e creio que ao fim, estaremos levando mais pessoas do que o previsto, pode ser que mais mulheres e crianças sejam evacuadas...”

“Mas isso não seria melhor?”

“Sim, mas...”

“Tem medo da responsabilidade? Por que se for isso, esqueça já... você foi capaz de nos comandar até aqui... se foi capaz de comandar mais de dez homens loucos e desmiolados, tenho absoluta certeza que conseguirá comandar senhoras e senhoritas que estão loucas para sumir daqui o quanto antes...” Julio me disse fazendo piada do que havíamos passado na estrada.

“Obrigado pela confiança” lhe respondi, sem saber o que mais lhe dizer... saber o que dizer, na verdade, eu sabia... e eu precisava lhe dizer a verdade que havia em Houston, a minha verdade, eu só não sabia como ou quando eu chegaria neste ponto.

“Mas, qual o problema, então? Não estou entendendo Jasper...”

Ok, lá vai...

“Houston é minha cidade, nasci e fui criado por toda a minha vida. Toda a minha família está lá” – espero que estejam ainda.

“E... qual o problema disto? Vai ser ótimo você poder rever sua família de novo!”

“Você não entende Julio... eu... eu... eu fui o culpado de instalar toda a desgraça e depressão que havia no mundo naquela família, eu fui responsável de apagar a felicidade do rosto de minha mãe, fui o responsável por estragar os planos de meu pai, fui responsável por trazer tanto mal que nem sei se sou capaz de voltar e ser bem-vindo novamente... é difícil saber que, ao contrário das pessoas que perderam parentes na guerra, eu tenho família e não consigo voltar até eles... há uma barreira entre eles e eu... e eu também prometi não voltar mais...”

“Por que fez isso? O que você fez? Você não foi capaz de matar nem um coelho ontem de noite quando tentamos caçar, quanto mais arruinar a família deste jeito...” Julio tentou me confortar, ele era bom nisso, mas ele não sabia de tudo ainda... “Bom... você matou alguém?”

“Não, não matei” lhe respondi rindo, mas ao perceber que eu teria de lhe explicar o motivo de tudo, parei de rir na mesma hora... “não matei, mas quase... acabei com a felicidade daquela casa... Você não entende o que eu fiz às pessoas que eu amava? Eu... creio que eu nem sabia o quanto eu as amava até o assunto “Houston” voltar na sala do tenente hoje pela manhã.”

“Bom, o que aconteceu? Não entendo ainda, mas se você me explicar, posso entender e te ajudar...”

“Bem, eu tinha um irmão e nós costumávamos brincar sempre, todos os dias, até que um dia ele caiu num poço de água de nossa fazenda, e meu mundo caiu junto com ele. Ele ficou doente depois, pegou pneumonia, e faleceu pouco depois. A doença estava grave, e como todos sabem, pneumonia não tem cura. Ela apenas corroeu meu irmão, o levando com minha alegria para bem longe. Depois disso, foi só desgraça: eu não me conformei com a morte de meu irmão, e continuei de luto todo o tempo. Perdi dois casamentos, perdi minha família, perdi a empregada que eu era muito amigo, perdi a vontade de viver até ler no jornal de meu pai que a guerra havia começado há poucos dias, um ou dois. Me interessei e busquei dar um sentido novo a minha vida, creio que fui em direção ao alistamento mais para provar para a pobre alma de meu irmão o quão bom eu era no nosso jogo de guerra. Caminhei por muitas estradas longas, conheci várias pessoas, várias cidades, passei por situações constrangedoras até chegar a Pasadena, onde me alistei e conheci um homem metido a sabido chamado Julio. O resto você sabe...”

Ele não me disse nada de primeira – ele havia ficado quieto todo o tempo, apenas me olhava, inspecionava com aflição o que lhe contava. Finalmente, depois de segundos, ele me olhou e disse algo que eu preferia que ele não tivesse dito.

“O resto eu sei, mas... por que você ficou daquele jeito? Você se culpava? Não foi sua culpa ele ter pego pneumonia, podia ter sido qualquer um... se Deus quis assim, não há jeito de nós, meros humanos, recusar a sua ordem, Jasper... é assim que acontece, tudo é assim... tudo...”

“Não sei... se foi assim, Deus não estava do meu lado, e buscou pegar mais distância ainda depois...”

“Ok, mas... você simplesmente foi embora? Tem medo de voltar por que... por que não disse algo a eles?”

“Eu tentei dizer o máximo que eu queria dizer a eles na carta que deixei sob a mesa, mas não sei se o que disse foi suficiente... eu era novo demais, inocente demais ainda para saber que havia muito mais o que dizer além daquelas míseras palavras...”

“Carta? Novo? Oh ow, me conte Jasper... como assim?”

“Bem... não conte a ninguém o que vou lhe contar, mas... o que aconteceu é que eu fugi da casa de meu pai e deixei uma carta os avisando que eu tinha partido para a guerra.”

“E o caso do novo?”

“Hmm... olha...”

“Sem essa, me conta!”

“Eu não tinha idade o suficiente para entrar para a guerra... os soldados estavam aceitando apenas os maiores de idade, os que tinham vinte anos ou mais... e eu tinha apenas dezesseis, então tive de mentir...”

“Dezesseis Jasper? O que deu em você para jogar sua juventude fora assim?” – agora ele estava bravo, de uma forma que eu nunca o vi antes.

“Shhh... não grita... E você sabe o que deu em mim...”

“Ok” ele aparentou acalmar-se inesperadamente, “então você faz dezessete anos hoje, não vinte e um? Meu Deus, protege este garoto... melhor, dá um cérebro para ele, por favor!” ele disse como se estivesse aclamando por auxílio divino, como se estivesse rezando – eu adoro o senso de humor deste homem.

“Obrigado por suas preces, Julio... mas o que eu realmente gostaria de saber ao final de tudo: mesmo sabendo de tudo isso, você pode me acompanhar na viagem?”

“Já lhe respondi esta não, não?!”

“Não fale comigo deste jeito, eu sou teu superior, sou Major... não me ofenda...”

“Ah sim senhor Major, e o que o senhor poderá me fazer contra? Me fazer trocar suas fraldas?” ele disse gozando de mim, ok... isto teria volta...

“Muito engraçado soldado...”

E então nos levantamos brincando um com o outro – dando soco no ombro, para falar a verdade – e fomos em direção ao alojamento, eu tinha de contar tudo aos outros ainda hoje.

Chegando lá, todos ainda estavam basicamente no mesmo local que estavam antes de Julio e eu sairmos. Antes que eu pudesse dizer algo, Julio tomou a iniciativa.

“Soldados, por favor, sua atenção. O Major Jasper precisa falar algo para vocês!”

Todos olharam para mim, e eu apenas olhei para Julio, ainda ao meu lado, parecendo o meu fiel escudeiro. Sussurrei um agradecimento rápido a Julio e voltei minha atenção aos presentes.

“Soldados, trago uma notícia para vocês: a minha reunião foi como de sempre, com poucos resultados, mas hoje algo saiu além da expectativa. Os ataques no Norte estão mais frequentes e mais fortes, precisamos agir... O decidido foi que evacuar as mulheres e crianças era mais importante por hora, e eu fiquei a cargo de escolher quem iria me acompanhar nesta operação. A primeiro ponto, escolhi Julio pela afinidade que temos... e, vindo para cá, lembrei de algo que Julio havia me dito em nossa conversa: “Você nos trouxe para cá”. Não, eu não trouxe sozinho, pelo menos. Então eu gostaria de saber se você Marcos, se disponibilizaria para nos guiar até nosso destino, Houston.”

“Claro que aceito, Major. Será uma honra. Quando partiremos?” Marcos me perguntou.

“Obrigado por aceitar, e só iremos partir, logicamente, quando as mulheres e as crianças chegarem aqui, o que deve acontecer provavelmente dentro de uma semana ou talvez menos. Mais alguma pergunta soldados?”

Todos balançaram a cabeça negativamente, o que me era um bom sinal.

“Ótimo... Ah, eu já ia esquecendo, a Julio e Marcos, iremos a cavalo e nossas companhias irão em carroças... Marcos, será que você pode ir ao nosso porto e avisar aos soldados de lá que em breve iremos precisar de ajuda com o transporte?”

“Claro senhor, irei agora mesmo...” e então ele já saiu do alojamento, fechando a porta ao sair.

“Bom, é só, então... os outros soldados continuarão aqui servindo ao tenente e aos demais superiores. Obrigado.”

Todos voltaram ao que estavam fazendo antes, o clima já não estava mais pesado como estava da última vez que eu estive aqui. Lembrei a mim mesmo, eu tinha de falar com o tenente-coronel Jackson amanhã pela manhã, mas talvez eu fosse mais tarde hoje mesmo.

Fui em direção a minha cama, e comecei a me despir – ficando apenas com o necessário para dormir: camiseta branca e calção. Eu precisaria dormir agora, eu estava cansado de ter que pensar em tudo o que eu já fiz e ainda reviveria refazendo o caminho inverso de Galveston.

Deitei-me em minha cama, mas não vi muito do que aconteceu a minha volta. Apenas dormi.

1 comentários:

Debora disse...

Que bom que o Jasper contou tudo ao Julio!!!
Assim eu acho que ele ficou com menos medo de voltar pra casa de seus pais!!

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