31 de maio de 1861
Exatamente às 6:37 da manhã, um pelotão de carroças chegou com as mulheres e crianças para que pudéssemos as levar para Houston. Seria uma travessia difícil, cavalos não são a melhor das alternativas em termos de velocidade, talvez demorássemos semanas para chegar até lá.
Todos aqui na base já estavam acordados e tinham algo para fazer, com exceção de mim, logicamente. O tenente Jackson havia me liberado de todos os serviços possíveis e cabíveis a mim, e como lhe disse: “Ok, o senhor está dando liberdade para deixar um soldado se tornar um vagabundo preguiçoso!”
O que, sem dúvida, era o que eu estava me tornando... mas eu me envergonho disto, não pense o contrário.
Apesar de toda a adrenalina percorrendo cada minúscula parte de meu corpo, eu ainda estava nervoso quanto a voltar à Houston. Não sei, não me parecia certo, apesar de estar voltando apenas por uma boa causa, salvar estas pobres almas.
Nas carroças havia mulheres se apegando umas as outras, provavelmente com medo do que teriam passar ainda pela frente, e crianças que choravam. Me ocorreu que nenhum deles gritava, até que a última carroça entrasse no quintal do galpão, mais para perto do nosso campo de treinamento de tiro.
Era uma menina, uma pequena e magricela menina loira de olhos azuis. Eu sentia condolências por ela, percebia o quanto ela estava sofrendo por não se sentir apegada a nada ou a ninguém, nem aqui, nem de onde veio ou quem estava por perto dela. Uma mulher estava tentando a consolar, mas era em vão. Ela gritava e chorava, ou chorava gritando, tanto faz.
Mal percebi que o tenente Vasco – em todas as guarnições havia mais do que apenas um superior em cada segmento, como aqui, dois tenentes, apesar de um ser tenente-coronel – havia chegado e estava do meu lado.
“Cruel, não!?”
“Sim, claro. O que pode estar fazendo tanto mal assim a esta criança?”
“Os soldados que vieram com eles me disseram que esta menina foi encontrada sozinha na floresta.”
Sim, muito cruel... E eu temia saber o quanto esta cena se repetia em todos os cantos do país, em todos os cenários de batalhas... “Ela estava sozinha?”
“Sim, perdeu tudo. O pai que estava lutando na guerra e uns dias antes de encontrar-mos ela, soubemos que ele havia sido atingido por uma invenção do Norte, uma arma que a chamam de metralhadora. Ela seria muito útil para nós, tem uma velocidade imensa para os tiros e consegue atirar até...”
Não consegui ouvir mais nem uma palavra do que ele estava dizendo, as pessoas estão morrendo e ele está apenas comentando com orgulho qual o tipo de armas que está sendo empregado e o que ela é capaz? Tive de interrompê-lo...
“Por favor, tenente, não fique se vangloriando pelas evoluções bélicas que estão acontecendo na guerra. Há coisas mais importantes para se preocupar...”
Ele ficou desconcertado, mas continuou. “Sim, me desculpe. Então, como eu estava dizendo, seu pai estava lutando e morreu atingido em batalha, sua mãe e sua irmã ficaram presas em sua cabana que era a beira mar. Ela era de palha, o que fez com que o fogo ateado tomasse conta de toda a casa em minutos. As duas não conseguiram sair da casa, ficaram trancadas numa espécie de um quarto que elas tinham ao fundo da casa. Assustadas, creio que devem ter desmaiado ou ter tido algum problema de saúde, pois ninguém de perto as ouviu gritar pedindo por socorro...”
“Ou então a fumaça as deixou sem ar antes, as asfixiou” o complementei.
“Sim, é uma oportunidade nesses casos.”
“E ela? Estava onde?”
“Ela tinha saído para pegar água, mas no caminho foi surpreendida por mais um ataque, e então ela saiu correndo sem direção alguma. Os soldados disseram que a viram e então perguntaram de onde ela era e o que estava fazendo na floresta, e ela os respondeu. Depois de conversar, ela disse que precisava encontrar sua família e que elas precisavam dela com a água, os soldados lhe fizeram companhia e quando chegaram na casa dela, viram tudo ao chão. Eles fizeram uma busca pela casa e encontraram os corpos delas totalmente carbonizados. Desde então a menina não disse apenas uma palavra compreensível, ela só chorava, e como as carroças já estavam saindo, a colocaram na última.”
“O caminho todo ela veio assim?”
“Sim, chorando sentada apenas no canto, o mais distante possível das pessoas que estão ao seu redor... é triste.”
“E como.”
Saber de tudo aquilo apenas me deu mais forças para que eu a levasse em segurança até um local onde poderia retomar sua vida. Todos mereciam aquela segunda chance, mas mulheres e crianças sempre tiveram prioridade.
Não disse nada ao tenente, apenas entrei no galpão novamente e fui em direção a sala do tenente-coronel Jackson. Bati na porta e ele apenas gritou para que eu pudesse entrar, o que não fiz, eu seria curto em meu discurso, não havia motivo para entrar e perder tempo – eu queria levá-los todos o quanto antes, deixá-los em segurança num lugar seguro.
“Tenente Jackson, me desculpe a intromissão, mas apenas vim saber quando eu poderia levar os recém chegados a Houston. Eu gostaria de partir o quanto antes, deixar todos em segurança num bom lugar. Pelo menos, melhor do que aqui ou onde estavam...”
O tenente que andava de um lado para o outro em sua sala, parou instantaneamente.
“Jasper, meu filho, eu concordo plenamente com você, mas estou preocupado. Você tem certeza que se sente bem em voltar de onde veio? Nunca me pareceu ser uma boa opção deixar que você fizesse isso...”
“Está tudo bem, senhor” tentei o tranquilizar, era a única alternativa que eu tinha para que pudesse salvar quem pudesse ser salvo.
“Bem, se quiser ir agora, pode ir, mas venha me ver antes de ir, ok?” concordei com a cabeça, já me virando quando ele retornou a falar. “Eu tive umas conversas com um grande empresário de Houston, e ele ofereceu abrigo a todos os recém chegados. Toda a população da cidade se propôs a auxiliar no que fosse preciso para com os nossos visitantes. Se quiser pode ir agora, mas, espere alguns minutos, espere que nossos soldados ofereçam algo para comer. Após isso, pode ir depois de me ver, está bem?”
“Sim, está bem, obrigado.”
Apenas saí e fui correndo de volta ao alojamento. Julio e Marcos não estavam lá, então saí procurando por eles entre os demais que passavam por mim. Um deles me disse que eles estavam juntos recebendo as nossas novas companhias, o que me levou novamente para fora do galpão.
Percorri todo o local em busca dos dois, mas apenas os encontrei após alguns minutos. Eles estavam ajudando os outros soldados a tirar o peso da carroça de suas costas e a prendê-los em estábulos.
“Julio, Marcos, preciso falar com vocês em particular, ok?”
Ambos apenas concordaram, largaram o que estavam fazendo e me seguiram novamente em direção ao alojamento – era o local em que estava completamente vazio, sem ninguém o rondando.
Entramos e nos encaramos, eu seria extremamente veloz com o que eu teria de falar.
“Bem, serei rápido, ok? Nós temos a liberdade de já partirmos, mas o tenente ainda pediu para que esperássemos um tempinho pra que todos tenham a possibilidade de se alimentar o suficiente para a viagem. Também quero que comecem a separar os seus pertences e um pouco de comida. Eu pedirei daqui a pouco para que separem mais comida para as mulheres e crianças, assim que tudo estiver pronto, partiremos o quanto antes. Minha prioridade é levar todos em segurança até Houston no mais curto espaço de tempo que pudermos levar, e então depois voltar para cá para ver se temos mais para transportar. Há um navio no porto a nossa espera, há espaço o suficiente para os cavalos e as carroças irem junto. Conto com a ajuda de vocês!”
“Claro, sempre senhor” Marcos me disse, “avise-nos quando iremos, estou indo arrumar meus pertences. Obrigado” e foi em direção a sua cama já arrumar as suas roupas e mais alguns objetos que ele trazia consigo.
“Ok, me avise quando for a hora, estarei pronto. Sempre estou, lembra?” e Julio, ainda rindo, saiu em direção a sua cama para reunir o que ele tinha.
Passei por eles – meus pertences já estavam arrumados a alguns dias, três exatamente, eu estava nervoso – e fui ver como estavam os nossos novos visitantes. Fiquei apenas de lado, encostado na parede do galpão até que, inesperadamente, eu vi aquela menina, a que perdeu tudo.
Não pensei duas vezes, fui até ela, eu queria conversar com ela – até por que ela não estava mais gritando e chorando, e vice-versa. Cheguei vagarosamente e me agachei perto dela. Procurei em minha mente algo para conversar com uma criança, e vi que não sabia de nada. Mas eu não recuaria, eu teria de me lembrar de falar com ela do mesmo jeito que eu gostava quando as pessoas conversavam comigo – só havia um detalhe: as pessoas falavam coisas tão particulares comigo, assuntos tão meus. Isso! Eu sou um gênio...
“Oi, meu nome é Jasper Whitlock. Qual é o seu?” não havia coisa mais particular do que isso.
Ela estava sentada no chão, como se estivesse se fechando numa pequena bola, e olhando para baixo. Assim que me ouviu, ela levantou a cabeça até me encontrar, e me olhou triste e desesperada. Seus lindos e claros olhos azuis estavam manchados de vermelhos, e um pouco inchados – ela chorou por muito tempo, logicamente que estaria assim.
Ela apenas me olhou, não disse nada, o que me fez perguntar novamente. “Qual seu nome? Eu não vou te machucar, eu sou bonzinho!”
Ela continuou me olhando, e então ela respondeu: “Cristina Valle.”
Sorri quando ela me respondeu, se eu continuasse assim, conseguiria fazer um bom trabalho com ela, conseguiria tranquilizá-la falando que ela estaria num lugar seguro. Eu, pelo menos, tentaria a acalmar.
“Oi Cris, posso te chamar assim?” ela apenas fez sinal com a cabeça, “você não quer comer? Não está com fome?”
Ela concordou comigo, e então me preocupei. “Hey, novato, me traz algo para esta bonequinha aqui.”
“Por que você dá ordens aqui?” ela me perguntou mais calma, já se desfazendo aos poucos de sua posição de bolinha.
“Por que eu sou Major, um posto acima dos soldados comuns.”
“Você comanda os ataques?” – eu sabia onde ela queria chegar, e sabia que ela estava com medo da resposta.
“Não, não sou. Eu apenas tomo conta do que acontece e deixa de acontecer aqui pela nossa base. Às vezes, eu tenho direito de fazer alguma outra coisinha, mas é muito raramente. Eu me contento com o meu trabalho.”
“Você deixou de ser soldado?” – ela estava ficando mais calma, muito mais calma do que quando a vi chegando, eu já via até um pouco de felicidade iluminando seu rosto.
“Não, continuo sendo, todos continuamos apesar de sermos de uma patente maior que os demais.”
“Você gosta de ser soldado?”
“Sim, eu gosto por que fazendo o que eu faço, eu posso ajudar os que precisão de ajuda como você. E vou lhe dizer, estou te arranjando um ótimo lugar para ficar, você vai ter uma casa linda, grande o suficiente para brincar o quanto quiser. Você gosta de brincar?” – apesar de eu ter tocado em assuntos delicados, ela ainda continuava calma ao meu lado, e feliz...
“Sim, eu gosto de brincar, só sinto saudade de minha irmã por que eu brincava com ela, e eu também não consegui pegar minha boneca para brincar...”
“Ah, mas não se preocupe com isso querida” – nesta hora, o soldado voltou me trazendo pão e suco para a Cris, – “tome, coma e beba tudo, lhe fará sentir melhor.” Ela pegou e já foi comendo, sem dúvida estava faminta, não devia ter se alimentado de nada nos últimos dias devido a sua preocupação com sua família. “Mas, então, como eu estava lhe dizendo, não se preocupe, eu posso fazer uma boneca se você quiser. Não será a mais bonita de todas, mas ainda servirá para brincar. Quer uma?”
“Aham...” ela nem conseguiu dizer, pois estava comendo, mas então ela sorriu o sorriso mais brilhante e iluminado de todos os que eu já havia visto. Havia vida nela novamente, e eu estava orgulhoso de tê-la ajudado.
“Ok, começarei agora mesmo. Soldado, é, você, por favor, me arranje uma espiga de milho e alguns pedaços de panos o quanto antes.”
“Mas Major...”
“Não me pergunte nada, apenas obedeça soldado.”
“Sim, senhor.”
Ele saiu e então voltei minha atenção à pequenina ao meu lado. Me sentei ao seu lado esperando para que ela terminasse de comer, o que fez rapidamente e então lhe pedi mais comida, que também comeu rapidamente.
Ficamos conversando por um bom tempo até que a sua boneca estivesse pronta. Eu nunca tinha feito uma boneca antes, mas a Cris estava me indicando o que fazer, passo a passo, pois ela e a irmã tinham as bonecas feitas manualmente também. Quando ela estava pronta, ela simplesmente olhou para mim e disse:
“Ficou linda, divina, e chamará... não sei...” ela tinha começado feliz, mas então ficou embaraçada.
“Bom, ela é linda, não!?”
“Sim, claro, olhe para ela. Ela é bonita e feliz, e vai ser a boneca mais simpática e carinhosa do mundo todo...”
“Bom, pode ser Mary?” lhe propus.
“Mary? É um nome bonito...”
“É o nome de minha mãe, e ela era tudo o que você disse.”
“Tudo bem, eu vou deixar ela como Mary. Para ser sua mamãe ela deve ser muito divertida também, sua mãe está aqui?”
“Não, está em Houston.”
“Por isso que vamos para lá?”
“Não, vamos por que lá não há guerra. E, quem sabe o que te espera em primeiro lugar, você pode ir ficar com minha mãe, ela está muito sozinha...” – senti a felicidade fugir de mim como rato que foge da ratoeira.
“Ela só tem você de filho?”
“Mais ou menos” ela ficou em dúvida com isso, e soube que ela iria perguntar, então respondi antes que ela me interrompesse e esta onda de sinceridade evaporasse de mim, “ela tem eu, mas, faz tanto tempo que não a vejo, e bem... eu fugi de minha casa por que eu e meu pai não estávamos nos dando mais bem. Eu senti a necessidade de sair e então saí, fiz bem para mim, mas não para minha mãe, e só percebi isso há pouco tempo, então acho que, no fim de tudo, vai me fazer voltar para lá, para a minha cidade... e eu tinha um irmão também, mas ele faleceu há muito tempo por que estava doente.”
“Hmmm... eu adoraria conhecer sua mãe.”
“Sim, adoraria mesmo. Ela é encantadora e muito amável. Se você gostar, e se ela quiser lógico, você pode ficar lá com ela. Ela adora crianças e meninas, sempre me disse que um dia gostaria de me dar uma irmã. E então, que tal? Gostaria de ser minha irmãzinha menor?”
“Claro que sim, adoraria...” e percebi então o quão feliz ela esteve o tempo todo comigo. “Você vai continuar na guerra?”
“Preciso continuar a ajudar as pessoas. Seria melhor assim, não!?”
Ela concordou comigo, e então ficamos sentados conversando mais um pouco. Quando o dia se aproximava das 8 horas, um soldado veio até mim dizendo que o tenente Jackson queria me ver. Apenas disse a Cris que ela deveria se aprontar e ficar alerta para nossa partida, poderíamos partir a qualquer hora e na correria, ela poderia ficar para trás. Ela ficou feliz e então saiu em direção a uma carroça.
Cheguei na sala do tenente Jackson, entrei e então ele apenas me disse rapidamente:
“Jasper, não me interrompa, sei que você quer sair o quanto antes daqui para levar todos, mas antes de tudo, quero que você saiba que eu me honro muito de ter tido a oportunidade de conviver com um homem como você. Eu me orgulho do que passamos juntos, do quanto vi você crescer. Então vá, e conforme for passado pelas bases, vai me escrevendo e mande que um dos soldados venha me entregar. Não fique sem se comunicar comigo. Vá e volte. Obrigado. Agora vá.”
Diante de seu discurso rápido e curto, não me restou nada o que pudesse dizer, então: “Obrigado, eu irei. Até a volta tenente.”
Apenas saí, e corri em busca de meus companheiros de viagem. Os achei juntos e os avisei da partida, e então saímos em busca de nossos cavalos. Montamos e fomos embora, apenas olhei para trás para ter certeza se Cris estava realmente na primeira carroça, sorri, pois ela estava, e depois voltei minha atenção para a estrada, para o que ainda eu teria de reviver. Tudo de novo.
2 comentários:
team jasper!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Always!!! *-*
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