Solitário - Capítulo 30: Vinte E Três

30 de agosto de 1862

Eu era o predador. Estava acima de todo e qualquer animal existente no planeta. Os que estavam abaixo, infelizmente, me serviriam como sobrevivência. Mas eu não sentia culpa ou dor por fazer isto, eles também fazem o mesmo. Não tinha o porquê de me sentir mal com relação a isso.

Ninguém tinha de se sentir assim. É o que Maria diz incessantemente a todos do grupo ou aos novatos – e não há nada para que eu possa me basear e ir contra seus ensinamentos, ela era mais sábia e conhecia mais coisas desta vida, ela ensinava e ponto final.

Sim, estávamos recrutando mais alguns – os imbecis anteriores, alguns, pelo menos, brigaram e morreram ou então acabaram que por preferir fugir a ficar lutando por cidades.

Ainda éramos todos soldados. Éramos vinte. Vinte da Confederação, por que os dois que entraram da União eu me encarreguei de eliminá-los.

E por falar em Confederação, esta guerra americana ainda nos rende maravilhosos manjares. Ninguém percebe a falta de alguém nestas horas. Se eles estão batalhando, lutando em campo, e depois retornam ao acampamento, só há uma resposta para a não-vinda deles: morto em combate com o corpo desaparecido. É simples.

Simples e eficaz. Resolvia muitos dos nossos problemas.

A guerra já se estendia por vários estados, mas os da Confederação estivam em desvantagem por serem poucos. Os armamentos, a munição, os alimentos. Tudo era pouco e estava sendo economizados. Os preços dos objetos que os humanos comuns usavam estavam altíssimos. Cheguei a ver pessoas se suicidarem por não conseguir sobreviver sem dinheiro.

Nestas horas eu chegava a aplaudir estas reações físicas às crises. Eu pensava, ‘melhor para mim!’, apesar de que o sangue de um já morto, aos poucos, vai ficando frio e seco. Pelo menos eu poupava esforços. Sem querer, eles se entregavam a mim, não a salvação.

Minha inteligência se aguçou nos últimos meses. Passei por inúmeras situações de ataques a pequenas cidades, e casualmente, um encontro amável com outro vampiro fora do nosso grupo. Espero que todos entendam o real significado do “encontro amável”.

Nem tudo se destruía, e o que era, escondíamos a prova. Quase sempre eu ganhava apenas com a força. Quando meu rival começava a sair em vantagem, eu apelava para meus dons. Ah como eu amava estes meus dons.

Eu controlava tudo, fosse inimigo ou amigo. Com o mais forte dos vampiros eu o podia fazer com que sentisse tanto cansaço, que ao menos conseguiria se manter em pé em consciência. Com a mais maculada e virgem senhorita, eu poderia a transformar na mais irreverente moça de saloons.

Obviamente, por princípios e educação, eu nunca tentei e prometo nunca tentar nada com a pobre da senhorita intocada. Eu era uma pessoa má, afinal era um vampiro, mas nem tão mal assim...

As únicas lembranças que tenho destes dias, são as malditas mordidas que os malditos que deixaram pelo meu corpo. A cada ataque, eu percebia que minha coleção particular aumentava lentamente. Uma em uma noite. Mais duas no outro ataque. E assim ia, ganhando cada vez mais. Talvez eu fosse o vampiro com mais mordidas no mundo, quem sabe.

Fato é que elas apenas permaneciam em minha pele como cicatrizes brancas peroladas. Se vistas sob a luz do Sol, elas brilhavam como uma fina seda refinada. Mesmo assim, eu não era tão mal.

Aliás, eu era o preferido de Maria, minha companheira – mesmo que, às vezes, sentisse no fundo de meu coração que aquilo era algo errado de se fazer.

Eu adorava suas decisões, mesmo que não concordasse plenamente com todas. Se possível, eu a venerava quando passava na minha frente – posso fazer o quê? Eu manipulava as emoções dos outros, não a minha!

Ela sempre me buscava quando planejava algum ataque ou mesmo sequer uma pequena saída para um lanchinho. E isso ela estava fazendo com mais frequência ultimamente.

Ela me “promovera” de cargo, se é que existia algum. Fiquei encarregado de tomar conta dos recém-chegados, o que me fazia sentir ridiculamente como uma babá, e com os veteranos. Eu lhes passava as novidades e as coordenadas dos ataques. Eu ficava à frente dos demais nas decisões e nos ataques. Eu tinha mais vantagens que os demais.

Enfim, era como se eu fosse um Major.

Meus sentidos vampirescos se tornaram totalmente adaptados a estes tipos de ações: ataques, lutas sangrentas e sentimentos, claro. Eu estava me tornando cada vez mais forte, apesar de a força “extra” que temos quando somos transformados tenha ido embora após um ano se passar.

Com a minha habilidade de manipular emoções, o convívio entre recém-vampiros, vampiros e as três mulheres, Nettie, Lucy e Maria se tornou muito mais fácil.

Percorremos por várias cidades ao longo de todo o Texas tentando tomar conhecimento dos que estão por lá e como poderíamos nos apossar da área. Entre táticas e estratégias propostas ao longo de dois exaustivos dias, chegamos a conclusão que teríamos que invadir a cidade pelo Sul, onde havia muitos barracos e pessoas pobres e doentes (o que não agrada muito os vampiros, nem o cheiro, nem o gosto. Ainda bem que aquilo não era um restaurante, caso contrário, a empresa já estaria falida há muito tempo), para depois ir para o centro.

Para a certeza da tomada da cidade, uma forcinha “extra” nos cairia muito bem. Foi o que foi proposto por Nettie.

“Eu saio hoje e pego mais alguns, assim que acordarem, eu mesma lhes direi as primeiras palavras e então partiremos para a conquista!” ela dizia confiante, mesmo que percebesse a falta de crença de suas colegas – e como havia falta de fé ali... faltava fé e sobrava nervosismo e coragem. Tudo ao mesmo tempo. Aquilo iria me deixar louco, mais dia, menos dia.

“Quando você sai para arrebatar, geralmente volta só com corpos sem vida. Você não sabe fazer a coisa certa” dizia Lucy nervosa. “Aliás, poucas vezes faz algo certo.” Sim, ela estava irritada também.

“Concordo com Lucy, Nettie. Você raramente os salva, sempre continua drenando. Nunca sabe o que fazer” esta era Maria dando seu veredicto.

“Jasper, que me diz?” Nettie me perguntou ansiosa.

“Bem” procurei por palavras doces o suficiente para não magoá-la ou que me fizesse controlar a situação, “se me lembro bem, você mesma disse que matava mais do que salvava os outros. Já nos conhecemos assim, lembra?”

“Sim, me lembro” disse ela rindo envergonhada.

“Então creio que seja algo perigoso destinado a você.”

Ela não gostou de minhas palavras, e senti sua vergonha dar espaço a uma fúria sem igual.

“O que quer dizer com isto? Que sou uma inútil?”

As outras, pobres coitadas, sem saber do nível de seu estado emocional, apenas provocaram ainda mais. É como se você fosse avisado que na grande colmeia existissem grandes e fortes abelhas, mas enquanto não sentir na pele a dor de suas ferroadas, você não para.

“Se sabe tão bem das coisas, por que pergunta?” esta era a Lucy, a destemida. Maria apenas ria num sorriso que até mesmo um cego perceberia que ela estava insinuando o mesmo que Lucy. Mulheres... nunca irei entendê-las. Conforme-se Jasper. Derrotado...

“Não briguem senhoritas” disse mandando-lhes uma onda de calma sobre as três ali presentes na relva, “não briguem, mantenham-se calmas com as cabeças sob os pescoços, por favor.”

Ao mesmo tempo em que lhes disse, elas foram se acalmando instantaneamente. Digo e repito, eu amo minhas habilidades.

“E Nettie, não disse que você é inútil ou qualquer coisa que seja, apenas disse que salvar não era algo de seu tipo.” Olhei para ela, que me olhava como se sentisse magoada. Mulheres, meus Deus... Enviei-lhes outra onda de calma, agora com um leve toque de felicidade. Todas responderam bem ao mesmo tempo. “Mas não disse que o plano era de mau feito. Muito pelo contrário, é de muita utilidade mais alguns por aqui. E não se preocupem, eu mesmo me encarregarei deles.”

“Hmmm... você é o homem das ideias e atitudes aqui, Jasper...” Maria disse tortuosamente encantadora.

“Não tire o crédito de Nettie, querida.” Olhei para todas que apenas confirmaram com a cabeça. “Posso ir com a certeza que quando voltar suas cabeças e membros ainda estarão em seus corpos?”

“Está duvidando de nós, querido Jasper?” Maria tentou mostrar-se desconfiada, mas ela não me engana. Não pelo menos em questão de sentimentos. Ela estava apenas brincando.

“Claro que não, mas prometam manterem-se vivas!”

E todas prometeram. Saí.

Voltei cerca de cinco minutos depois. O pousei delicadamente sobre a relva espessa da região. Ao toque do chão, seu forte corpo fez um alto baque. Ok, não o pousei tão delicadamente assim.

Corri novamente e voltei com mais um. O mesmo procedimento de deixar para que o veneno se espalhasse.

Saí e voltei com mais outro.

Um, dois, três.

Três soldados da Confederação – assim eu estava agradando tanto a Maria, que queria apenas soldados, quanto a mim, que era um soldado da Confederação e cuidava dos novatos.

Os três dias passaram e então percebi que a dor neles estava diminuindo drasticamente. Eles se sentaram, olharam ao redor, mas não saíram andando por aí. Deve ser uma das primeiras coisas que já se sabe fazer quando é um vampiro recém-transformado: não sair andando por aí sem mais nem menos.

Fui até eles, expliquei tudo o que havia acontecido, o que estava acontecendo e o que havia de acontecer. Os bêbados deitados inconscientes sob a sombra de uma antiga árvore imponente continuavam sem saber onde estavam.

Ou melhor, com quem estavam.

Ou melhor ainda, por que estavam no lugar onde estavam com as pessoas que estavam...

Eles serviriam de janta para nossos novos recrutados. Mas não pense que sou mal a ponto de catar qualquer um na rua para essas coisas, servir como alimento. Peguei apenas os dezessete fugitivos de um quartel de xerife que ficava em Brownfield, uma cidade por perto.

Logicamente que Brownfield e as cidades das regiões ficariam alertas sobre a fuga em massa, mas eles não tinham com o que se preocupar. Em breve, restariam apenas corpos indefesos no chão – não como agora desacordados, mas simplesmente sem vida.

Cada um levantou-se e correu às nossas vítimas cravando sua mandíbula em seus pescoços. Percebi minha cara se transformar numa expressão de careta, afinal, estes tem problemas! Eu teria de conversar com eles depois.

Drenado completamente o sangue, um por um, corpos foram caindo imóveis no chão.

Ao fim da ceia, viraram e me olharam ansiosos, mas não por mais, todos estavam muito bem alimentados, saciados.

“Bem, antes de tudo, tenho algo a dizer para vocês... E não levem por mal...” tentei começar, e vi que eles não iriam ir contra meu discurso, muito menos levar algo por mal. “Primeiro: vocês estão imundos, tentem não derramar tanto sangue assim da próxima vez. É desperdício! Segundo: por que direto ao pescoço? Sabe, lá não é o único local onde corre sangue. Inclusive, é por lá onde o fluxo de sangue é maior, e esta é a causa de estarem tão sujos. Escorreu sem que pudessem chupar a tempo. E terceiro: quais seus nomes?”

Todos aceitaram meu discurso pacientemente apenas absorvendo as informações, e então quando lhes perguntei os nomes, se puseram a movimentar um pouco desconfortáveis. Deus sabe o porque...

“Me chamo Elliott Odoms” o moreno de cabelos negros e lisos e de vestes azuis, como as que eram idênticas as minhas, disse.

“Lembra o que fazia antes?” lhe perguntei – eu queria saber qual seu posto.

“Bem, eu estava verificando se havia algum espião nas voltas de nosso acampamento por que eu tinha ouvido um pequeno barulhinho, e então fui pego de surpresa por algo muito forte que mordeu meu ombro esquerdo. Antes mesmo que pudesse ver quem era... eu já não via mais nada, para falar a verdade...”

“Eu não estava me referindo exatamente ao o que estava acontecendo antes que eu chegasse a vocês, mas o que vocês faziam na guerra” expliquei por menores.

“Ah, sim, desculpe-me. Eu era Major na base de Midland e estávamos planejando um ataque a Roswell, divisa com Novo México.”

“Bom, eu também era Major, só que na base de Galveston.”

“Desculpe” Elliot me disse, “o senhor é então o Major Whitlock?”

“Sim” respondi incrédulo por saber quem eu era – será que ele via o passado ou enxergava as coisas na mente? “Como sabe disso?”

“Eu recebi um jornal do estado ano passado dizendo que o mais novo Major dos Estados Unidos estava sumido. Disseram qual era sua última posição, o que havia acontecido pouco antes de sumir e o que estava indo fazer quando sumiu.” Suas palavras me atingiram como estacas no peito – apesar disso nem me fazer cócegas. “Muitos soldados e senhores das altas patentes da Ilha que o senhor estava servindo ficaram arrasados. Muitos perderam a vontade de continuar batalhando e desistiram. Os que não desistiram antes das batalhas, desistiram quando ainda ocorria e morreram violentamente. Os que sobreviveram estavam pensando em construir alguma homenagem para o senhor, só não foi decidido o local ainda...” Ele fez uma pausa. “Desculpe-me pela notícia. O senhor não sabia destas coisas, não!?” ele adicionou percebendo minha expressão – eu estava em choque.

“Não, eu não sabia...” foi a única coisa que pude dizer a ele, nada mais convinha a ser dito. Agora que ele havia dito, eu já me lembrava melhor das coisas que fazia antes. Me lembrava de algumas faces e até uns nomes, como um tal de Julio. Seja lá quem for este, eu tinha laços com pessoas e agora já não me dou ao prazer de saber seus nomes ou o que fizeram.

Eu não estava bem, e me odiava por não conseguir controlar os meus próprios sentimentos. Resolvi não criar pânico, e então tentei fechar o caso e continuar com os outros.

“Ótimo. Depois eu gostaria de conversar melhor com o senhor, por favor...” lhe pedi, o que ele confirmou com a cabeça.

Voltei minha atenção aos outros. “E vocês?”

O de cabelo curto e ruivo e pintinhas no rosto tomou a dianteira. “Sou Carl Darwin de Amarillo e servia como soldado de ataque na base de Lubbock.” Sim, eu sabia que servia em cargos baixos por conta da farda cinzenta – sim, eu conseguia ver o cinza abaixo da lavagem vermelha sob ele. Vida longa aos meus olhos vampíricos!

Com a deixa, o terceiro de cabelos morenos e cacheados, que ficara até agora calado apenas ouvindo os anteriores, começou a se apresentar. “Sou Lloyd Bacon, sou de Lubbock e servia na própria base de Lubbock. Lá eu fazia a guarda pessoal do tenente-coronel Allison Bend.” Sim, guarda. Seu uniforme azul negro não o contradizia.

“Fico feliz por estarem aqui, e ficaria mais grato ainda se trocassem as roupas ou as limpassem neste riacho que corre aqui ao lado. Creio que podem escutar exatamente onde ele se encontra.” Todos concordaram olhando ao Leste.

“Meu nome é Jasper Whitlock, fui Major da Confederação e agora sirvo aqui como se fosse um Major também. Sou eu quem cuidará de vocês. Há muito mais de vocês aqui, exatamente vinte, portanto não se metam em brigas e não se matem. Vocês são fortes e inteligentes, precisaremos de vocês para a tomada de Monterrey. Iremos assim que vocês souberem o suficiente sobre lutas e sobrevivência nesta nova vida, a de um vampiro. Ao amanhecer irei começar o ensino, e não se preocupem, vocês não dormirão porque nenhum vampiro dorme. E não tentem me enganar ou fingir sentimentos por aqui, pois eu saberei...”

“Desculpe, senhor” Lloyd me interrompeu, “mas como o senhor sabe? Como não podemos enganá-lo? Os vampiros não conseguem enganar uns aos outros? É esta a causa das brigas?”

“São muitas perguntas soldado, mas posso te responder que eu sei por ter a habilidade de saber o que cada um está sentindo e manipular da forma que eu bem quiser. Mas dá para se enganar, o que acontece é que eu simplesmente sinto as emoções que as pessoas geralmente sentem quando mentem. Comigo, não dá para mentir e muito menos enganar.”

Todos sorriram extasiados com a notícia, ansiosos por saber quais seriam as habilidades de cada um. Antes que me interrompessem novamente, continuei.

“Não estamos aqui porque estamos realizando passeios pelo Texas, estamos aqui para tomar das mãos de outros vampiros algumas cidades. Quanto mais cidades conseguirmos, mais alimentos temos para nós. A primeira será Monterrey, cidade da Maria. Aliás, estamos todos os vinte, agora vinte e três a ordem das únicas três mulheres do grupo: Maria, Nettie e Lucy. Em breve as conhecerão. Conversarei com elas primeiro, e após, elas virão conhecê-los pessoalmente. Fiquem por aqui e não fujam, temos um rastreador entre os vinte daqui. Ele chegará em vocês antes mesmo de vocês terminarem de falar ‘predador’. E depois lhes explico o que é rastreador...” acrescentei por conta da dúvida crescente em suas faces.

Dei-lhes as costas e parti em direção às mulheres daqui, que por acaso estavam conversando como se fossem simples donzelas solteiras a comentar sobre seus noivos. Elas riam alegremente, o que me deixava mais calmo quanto às “cabeças e membros fora do corpo”. Elas prometeram e cumpriram. Ótimo.

Agora, aos negócios...

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