Solitário - Capítulo 43: Cuidado Com As Lembranças

Três dias se passaram e os seis homens que conseguimos em nossa última viagem estavam prestes a acordar. Eu podia ouvir os seus corações desistirem pouco a pouco. Já não passavam de meros sussurros.

Eles acordaram, e a cena de sempre se repetiu. Eles se alimentaram, se sujaram todos e depois lhes explicamos, Maria e eu, qual era a situação.

Os dois primeiros que encontramos, o loiro de cabelos lisos e o ruivo de cabelos curtos e frisado, eram Graciel e Pablo.

Graciel era simpático, e tinha o dom de enxergar a quanto estava um relacionamento. Perguntei-lhe se, por acaso, ele via “algo” entre mim e Maria, mas ele respondeu que o que via era simplesmente “uma pequena e quebradiça linha”, como ele mesmo disse.

Não havia algo grande.

Pablo não fazia nada – nada pelo menos que eu saiba. Maria disse que ele muito bonito, muito além das outras pessoas, e que via que este era o seu dom, mas... Particularmente, isso não é dom para mim... e nunca será...

E não me digam que isto é ciúmes, pois não tenho ciúmes daquele cabelo de fogo.

Continuando, os outros que adentraram em nosso grupo são: James, Oliver, Jackson e Frankie.

James era um rastreador deveras orgulhoso de si mesmo, mas isto não vem ao caso, pois isso duraria pouco mesmo. Em breve eu teria de ensiná-lo a se comportar. E ele teria de cooperar.

Oliver era simpático, não tive problemas com ele. Seu dom? Nenhum também, mas Maria insiste em dizer que ele tem algo relacionado à mente. Naquele momento já me desesperei. Mais um que trabalha com a mente?! Mas então, após uma conversa, percebemos que, na verdade, ele é apenas capaz de lembrar tudo que lhe digam e quem lhe disse.

Não é muito útil, coitado.

Jackson é um moleque sem educação. Já criou confusão assim que acordou – brigou com os outros, assanhou-se com Maria, deu soco em Francisco... esses tipos de coisas que só vampiros loucos fazem, sabe?! – e então tive de tomar partido de seus atos irresponsáveis.

Não fazia nada também além de carregar seus músculos para cima e para baixo. Não é muito útil se não houver luta. Ele, como já disse, tinha o dom da força, mas era um pouco só mais forte que Gerardo. Quando completar doze meses, arderá no fogo.

E tem ainda o Frankie. Moleque bacana. Simpático e honesto. Mas ainda assim estava preocupado com o que ele podia fazer, pois Maria tinha dito que ele fazia algo muito semelhante ao que Francisco faz – que é controlar as lembranças, as memórias mais profundas e sombrias das pessoas.

Ok, isso me assustava. Ele me assustava. Eles dois me assustavam. ainda bem que quem sabe dos sentimentos aqui sou eu!

Esperei pacientemente que ele acordasse para descobrir qual era seu dom exato. A ideia de sofrer neste grupo com pessoas de sentimentos tão ridículos não me agradava – me refiro aos novatos –, e saber que ainda poderia sofrer mais ainda por conta deste novo indivíduo... Ah, isso realmente não me agradava nem um pouco!

Assim que acordou, Maria lhe ensinou todo o necessário de nossa vida. Ele ouviu tranquilamente, mesmo que um pouco confuso. Eu fiquei apenas observando para ter certeza de que o dom de Maria estava errado. Que ele não tinha dom algum relacionado à mente.

Que Maria estivesse errada... Eu estava torcendo tanto por isso.

Assim que ela terminou de passar tudo a todos, ela veio falar comigo.

“Eles são magníficos, não?!” ela disse animada.

“Tirando o tal do James e do Jackson, por mim está tudo bem!”

“James e Jackson? Os dois com a letra J!”

“E?...”

“E você se chama Jasper!” – ok. Chega! Entendi onde ela queria chegar!

“Isso não tem nada a ver, Maria. Não invente essas coisas. E não fique me associando a esses dois! É um desrespeito contra mim! Justo eu, que sempre estive ao seu lado nestes anos. Nos momentos que você mais precisava de ajuda, quem estava lá? Eu!”

“Ok, desculpe-me!” ela disse rindo – mas não sei se ela levou a sério minhas palavras, pois eram sinceras. “Você está curioso ainda sobre Frankie?”

“Sim, descobriu?”

“Sim!” ela disse contente.

“E por que não me conta ao invés de apenas ficar me olhando?”

“Porque seria mais divertido se você mesmo conversasse com ele!”

“Ah, eu não sei, Maria!” – oh ow... Chegar perto dele? Nem pensar!

“Por que não? Ele é um bom rapaz, não é problemático, nem nada! Vamos! Tente!” ela tentou me encorajar. “Por mim?” ela disse derrotada fingindo estar magoada, mas eu sabia que ela não estava magoada – aquilo era apenas um teatro sem um palco montado.

“Ok. Irei agora mesmo então...”

Fui em direção ao quarto ao lado, onde estavam os recém criados sendo recebidos pelos outros mais antigos do grupo: Lloyd, Francisco e Gerardo. E o encontrei sentado em um canto da sala. O canto mais escuro, devo ressaltar.

Os outros nem lhe prestavam atenção. Enquanto todos se divertiam ou conheciam mais conversando entre si, ele apenas ficava lá no chão. Todos alegres, curiosos, orgulhosos, satisfeitos... Um ou outro estava travando uma batalha contra si mesmo – não gostaram de ser transformados, muito menos do que teriam que fazer de hoje em diante.

Frankie não. Frankie não demonstrava quase nada. O pouco que eu sentia era apenas... apenas... bem estar. Nada mais, nada menos. Agora sim eu estava curioso quanto a ele.

“Oi” disse em frente a ele.

“Oi” – nenhuma emoção ainda... E eu não queria manipulá-lo para descobrir sobre ele.

“Posso me sentar?”

“A casa é sua, não?!”

“Tecnicamente não, mas em teoria...” fui e me sentei ao seu lado. “Eu gostaria de saber um pouco sobre você!”

“Por que de mim e não de você?” ele retrucou.

“Ok, sou Jasper e sou um dos líderes deste grupo. Eu irei treinar você e todos os novatos para que saibam lutar, se alimentar e viver sem chamar a atenção das pessoas comuns, dos humanos.”

“Ah” foi tudo o que consegui arrancar dele.

“E você?”

“Sou Frankie. Prazer!”

“Ah, muito prazer” o cumprimentei. Mas a conversa estacou por aí.

Fiquei ali apenas olhando os demais se divertindo. Nem uma olhadinha para o lado. Nem minha, nem dele.

“Bom... então, você é assim há muito tempo?” ele começou curioso.

“Sim, há mais de quatro anos já. Fui transformado pela Maria em 1861.”

“Hmm... o que você fazia?”

“Eu era major na Confederação. Costumava ficar no Porto de Galveston, mas então tive de levar alguns refugiados para Houston, onde ficariam mais seguros. E na volta, aconteceu que encontrei Maria, Nettie e Lucy. E você?”

“Quem são as outras duas?”

“Nettie e Lucy eram as antigas companheiras de Maria. Elas andavam sempre juntas e faziam tudo juntas. Os planos e os ataques. Tudo.”

“E o que aconteceu?”

“Lembra de quando falamos que Maria já teve grandes domínios de terra?” – ele confirmou com a cabeça afirmativamente, – “então, para assegurar que as cidades continuassem com Maria, ela designou que alguns dos nossos fossem para estas cidades impedir a invasão. Mas aconteceu que um grupo mais ao Sul nos atacou, mas não batalharam, apenas entregaram e fugiram. Pelo menos é o que pensamos ter acontecido!”

“Que covardes!”

“Olha, eu não chamaria de covardes... Elas eram corajosas, e Lucy era muito destemida, gostava de participar das nossas reuniões de estratégias e tudo, só que o problema foi que, em um desses ataques anteriores, elas perderam seus companheiros. Nossa espécie não costuma perdoar, sabe?! Então não sabemos ao certo se elas fugiram mesmo ou se lutaram contra os que mataram seus enamorados...”

“Não tem como descobrir?”

“Só se formos atrás delas com algum rastreador. Mas ainda assim seria difícil, pois não temos muita coisa delas. Temos apenas um pente dourado de cabelo de Lucy e um lenço também de cabelo de Nettie. Nas cidades em que ficaram, eu consegui encontrar alguns pertences, mas não muitos... Quando se é nômade, não é de costume ficar levando muita coisa junto de si.”

“Mas vocês não ficavam viajando?”

“Bem, sim, mas é que vivíamos mais ou menos desta forma. Passávamos a maior parte do tempo aqui, mas, se preciso, tínhamos de percorrer milhas de distância sem o infortúnio dos objetos. Não que alguns deles te atrapalhem na corrida, sabe?!”

“Sei” ele disse se animando, “e agora vocês estão conquistando ainda as cidades? Por isso nos pegou?”

“Não, não estamos mais atrás de cidades, mas somos em poucos. Bem, pelo menos éramos só em cinco, e isso era pouco. Precisamos de proteção aqui!”

“Hmm... legal...” ele disse pensativo, e então voltamos nossa atenção às brincadeiras que os outros estavam fazendo – Oliver estava de ponta cabeça se equilibrando com apenas um dedo no chão, enquanto Gerardo e Jackson estavam em outra quebra de braço. “Podemos dar uma volta?”

“Sim, claro. Só vamos avisar Maria primeiro!”

Fomos para o quarto de Maria, que tinha apenas um sofá e uma mesa com alguns objetos femininos – minha noção de objetos femininos era péssima. Ok, nem tanto, eu podia ver que ali estavam um pequeno pente e uma presilha, ambos banhado em ouro. Mas tinha alguma coisa de tinta em vidrinhos que serviam para se passar nos olhos... E ele fedia um pouco, não sei por que...

Ela estava arrumando algumas roupas em um canto. Após dobrá-las, ela as jogava no chão, novamente. Apenas ficamos olhando até que ela percebeu – falando assim parece que demorou horas, mas não durou menos de meio segundo. Acredite em mim...

“Sabe, Jasper, preciso de algum lugar para guardar minhas roupas!”

“Não é mais fácil parar de roubar elas?”

“Não, claro que não... e nem todas são roubadas!”

“E são o quê, por acaso?”

“São gentilmente emprestadas de nossos almoços!”

“É, faz muita diferença, não Frankie?”

“É...” ele disse rindo com a nossa situação.

“Bem, para que vieram aqui?” ela quis saber.

“Eu gostaria de saber se eu e Frankie poderíamos dar uma volta sem que a casa fique em pedaços por conta de Jackson e Gerardo!”

“Ah sim, eles são um grande problema. Hmm...” ela disse introspectiva, “sim, pode ir. Vá. Será melhor, porque então poderá não só mostrar ao Frankie a cidade, como também poderá por acaso descobrir algo sobre seu dom!”

“Ok, cuide da casa, ok?!” lhe disse reprimindo-a – eu sabia que ela não tomaria conta.

“Sim, claro. Sempre!” ela disse contente, mas eu sabia que era porque, provavelmente, ela estava planejando ou arranjar um armário, ou outro local qualquer em que pudesse guardar as roupas, ou então pegar roupas novas.

Viramos-nos e fomos embora, já mostrando ao Frankie que éramos bem mais rápidos que os humanos – o problema é que, como ele era um recém criado, ele era mais rápido que eu. Fui o direcionando – pois ele estava à minha frente – e o levei para a montanha – a que eu vivo lá em cima, olhando todo o horizonte no pôr do sol, assim como hoje.

Sentamos-nos e ficamos admirando a maravilhosa imagem que tínhamos em nossa frente. O vermelho fogo se misturava em um sombrio tom de roxo. As cores dançavam por entre as casas e as árvores. Uma cena magnífica.

“Então... gosta?” comecei a puxar o assunto – eu tinha de saber o que este infeliz fazia.

“Sim, é muito... bonito!” ele disse após uma pausa para procurar as palavras, mas acredito ainda que “bonito” era pouco... Contudo, concordei apenas com a cabeça satisfeito com a despedida do Sol. “Você vem muito aqui?”

“Sim, quase todos os dias. Como sabe?”

“Não sei, apenas experimentei uma tese, pois aparenta ser uma pessoa que frequenta muito aqui!”

“Bem, sim, eu venho sim aqui com frequência” lhe respondi, apesar de meus pensamentos já estarem longe.

Comecei a me lembrar de tudo que já fiz aqui. Todas as conversas que tive – algumas preocupantes, outras nem tanto, outras assim, em total tranquilidade – com as mais diversas pessoas que marcaram minha vida vampiresca. Tudo pelo que senti raiva, desgosto e preocupação ao mesmo tempo em que sentia afeto e amor.

Mas... aconteceu algo estranho. Esqueci. Eu simplesmente esqueci. Esqueci. Só isso. Não me lembrava mais dos dias em que sofri aqui pensando em meus problemas, ou nos dos outros que acabavam por me atingir...

Simplesmente se foi.

Coloquei a mão nas têmporas e as esfreguei com força, uma hora as minhas lembranças teriam de voltar... A não ser que...

“Frankie!”

“Sim?” ele disse inocentemente.

“Você por acaso estava pensando em algo, recentemente?”

“Bem, sim... eu estava pensando em como era bom ficar aqui!”

“Só isso?”

“Bem, não... eu imaginei você aqui sentado todo fim de tarde olhando o horizonte, às vezes conversando com algumas pessoas, que me pareciam ser vampiras também, aliás...”

“Ok, você vai achar estranho, mas você não imaginou!”

“Como assim? Você está louco?”

“Não, não estou. Olhe, Maria tem seu dom de ver o dom nas pessoas, certo?”

“Certo!”

“E ela disse que sabia que você tinha algo em comum com Francisco, aquele que consegue controlar as memórias, certo?”

“Certo!”

“Então... eu descobri o que você faz!”

“E o que eu faço? Imagino o que as pessoas dizem que eu não imagino?”

“Err... é mais ou menos por aí...” – ele ficou confuso, mas a situação estava assim mesmo. “Francisco faz que as lembranças retornem do mais profundo e obscuro canto de nossa mente. Você faz o contrário!”

“Eu faço as coisas voltar para lá?”

“Bem, creio que não. Creio que você faz com que as pessoas as esqueçam de vez, pois eu não me lembro mais das coisas que eu já fiz aqui em cima. E justamente quando eu estava pensando nelas, você as apagou!”

“Poxa, Jasper, desculpa!”

“Tudo bem, você ainda terá de ter muito treinamento com isso! Mas se dará bem!”

“Obrigado!”

“Agora vamos, temos de voltar e contar à Maria tudo o que descobrimos de você! Só não apague da minha memória o que aconteceu conosco agora há pouco, a nossa conversa, ok?!”

“E como faço isso?”

“Não pense no que falamos, ok?! Dá para fazer isso?”

“Sim, acho que dá!”

“Então vamos...”

E voltamos para contar à Maria – que nos recebeu bem. O que não estava bem era nossa casa. O assoalho estava em pedaços – Jackson e Gerardo acabaram por quebrar a mesa onde estavam, perderam o equilíbrio e, sabe-se lá Deus como, quebraram o assoalho – e James, o loiro orgulhoso não estava mais lá. Perguntei sobre ele, mas Maria disse que ele estava arrumando confusão com os outros, e então fugiu.

Ótimo. Menos um para minha preocupação.

Contamos à ela tudo. Frankie fez uma demonstração com os pensamentos de Maria – que ficou boquiaberta – e depois foi testar suas habilidades com Lloyd – que teve a mesma reação que eu tive antes: “Nossa, agora dois que mexem em nossas mentes conosco? Isso não vai dar certo!”

De resto, tudo estava caminhando bem. Agora já sabíamos o que Frankie fazia, sem querer descobrimos como ajudá-lo a não fazer com que as pessoas esqueçam-se de suas lembranças, James estava perdido mundo afora e Maria estava com uma nova cômoda para suas roupas.

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