Solitário - Capítulo 50: Monstro

1920

A vida continua.

Peter e Charlotte são meus companheiros de viagem inseparáveis. A compreensão e o carinho que sinto deles por mim é imensa, e não tenho palavras o suficiente para dizer como sou grato a tudo o que eles estão fazendo ou já fizeram por mim!

Minha nova vida, a nômade, consiste em ficar viajando por aí. Já nem sei mais por quantos lugares passei nestes últimos dois anos.

Percorri quase que todos os estados do Oeste. Arizona, Novo México, Colorado, Utah, Califórnia, Nevada, Oregon, Montana, Wyoming, Idaho...

São tantos que me perco nas contas...

No momento, estamos em Spokane, Norte de Washington.

Mas é sempre da mesma forma. Cada lugar, uma monotonia danada. Nenhuma ação. Nada! Nem mesmo nas caçadas, até porque eram as próprias vítimas que vinham até nós.

Geralmente, o que acontecia era assim. Em algumas cidades - nas mais pacatas -, Charlotte ficava nas ruas até que alguma pessoa vinha até ela. Depois, ela os levava até um local escuro em que nós dois, Peter e eu, atacávamos.

Era basicamente assim. As únicas exceções eram quando nós três nos dividíamos em dois grupos – Peter e Charlotte, e eu comigo mesmo – e ficávamos percorrendo os telhados das casas em busca de assaltantes, assassinos, estrupadores... Esses tipos de pessoas, sabe?!

É o que acontece.

Quando estamos no campo, nas fazendas, esperamos nas sombras que algum viajante distraído passe por nós. Mas isso nem sempre dava certo. Às vezes, eles conseguiam ver algo de nós e isso os deixava nervosos, ansiosos, amedrontados... E isso aumentava a adrenalina no corpo deles, e que deixava o sangue com um gosto horrível!

Mas a verdade era que nem sempre os malvados eram os únicos que pagavam pelos seus erros. As vítimas também. Assim como os dois corpos drenados que estão aos meus pés aqui, neste beco sombrio.

O homem muito mal encarado estava abusando de uma inocente e belíssima senhorita. Ataquei o agressor e, em uma fração de segundo, seu corpo já estava no chão. A coitada, porém, ficou ali parada, não se moveu nem um centímetro. Eu podia ouvir cada respiração pesada dela. Cada martelada de seu coração.

Aquilo não podia acontecer.

Tentei argumentar com ela, mas ela apenas ficou me olhando, encarando. Ela estava com medo. Tentei falar mais calmamente com ela, manipulei-a para isso, mas, por azar, a claridade da Lua banhou meu rosto e minha camisa cheios de sangue.

Aquilo a mortificou. No momento ela quase nem respirava mais... As suas emoções estavam saindo do controle. Do seu e do meu controle!

Ela iria correr e começar a gritar a qualquer momento, se é que ela sentia as próprias pernas e o pescoço no lugar.

Pescoço.

Veias.

Sangue.

Ela cheirava tão bem para mim. Aquilo era fatal para mim. Ela cheirava tão bem como o doce cheiro do mel tem para um urso pardo.

Sem me dar conta, minha boca se enchia de veneno.

Mesmo às escuras, essa maldita visão aperfeiçoada dos vampiros me permitia enxergar cada veia de seu pescoço. Elas eram azuis e tão... tão... convidativas...

Aquilo cheirava tão bem. Ela cheirava tão bem...

Estava tudo bem a minha frente. Como um leão pode fugir se a sua carne predileta foi jogado bem a sua frente?

Mas... como eu podia atacá-la?

Será que não foi o bastante que ela fosse vítima apenas do agressor?

Por que justamente ela tinha de ter aquele cheiro maravilhoso? Convidativo?

Como eu poderia reprimir o monstro dentro de mim com aquilo à minha frente?

Como eu posso vencer esta batalha, que já é perdida?

Eu já sabia a resposta desta e de várias outras respostas. Ela teria o mesmo fim que o agressor.

Fiquei a encarando ainda por alguns segundos antes de tomar alguma atitude.

Ela me dava água na boca, e eu não sabia por quanto tempo mais eu conseguiria aguentar...

O cheiro... O azul de sua veia... A fina e clara pele que tentava esconder e proteger o seu sangue... O seu cheiroso e maravilhoso sangue...

Ah...

Creio que ela nem tenha visto quando me aproximei dela, mas tenho certeza de que ela pode sentir o toque frio e cruel dos meus dedos, os meus finos e cortantes dentes...

Hmmm...

Eu ainda brinquei com ela inconscientemente... Enquanto uma mão segurava sua cabeça para trás, a outra brincava com seus cachos dourados os entrelaçando nos dedos.

Soltei-a e ela não moveu nem um músculo. Ela não respirava e seu coração não batia. A vítima não pertencia somente ao agressor. Ela era minha também. Todos são.

Era fácil para um vampiro apenas chegar e se alimentar de sua vítima, o problema é quando... é quando... é quando o vampiro sou eu!

Toda vez que eu atacava, eu consumia não só o sangue, mas como todos os seus últimos sentimentos. Acreditem em mim, estes sentimentos não são os mais positivos e bondosos!

Aquilo estava me corroendo por dentro. Eu sentia dor por isso, por saber que eu tinha o sangue e a alma das outras pessoas em mim e eu sequer podia fazer algo contra!

Aquilo mortificava mais a mim do que a qualquer vítima que eu tivesse.

Qual é o meu problema?

Por me importo tanto com essas coisas?

Por que elas aparentam afetar apenas a mim e não a Peter e Charlotte?

As coisas ruins aconteciam apenas comigo em nosso clã. Peter e Charlotte continuavam como se nada jamais tivesse lhes acontecido.

Eu os invejava até o último fio de cabelo que ambos tinham.

“A vida não é justa!”

Já escutei tantas vezes esta frase em minha vida, que apenas agora fazia sentido. Antes era como se fosse... surreal... impossível de acontecer de verdade.

Ok, eu mentia para mim mesmo há muito tempo – que tudo acabaria bem, que esse monstro dentro de mim um dia daria uma trégua digna de séculos, quem sabe milênios -, mas será que já não seria a hora de aceitar isso?

As coisas nem sempre acontecem do jeito que nós queremos – eu sou prova disso! Já tive tantos amigos, objetivos a conquistar, a lutar, a aprender... E, no entanto, cá estou eu, perdido, sozinho novamente!

Eu passava horas conversando com Peter, e ele sempre era compreensivo comigo. Charlotte estava mais preocupada comigo ultimamente – ela insiste em dizer que estou agindo diferente, que estou mais... sombrio.

Peter notou que toda vez que eu me alimentava, esse sentimento negativo aparecia. Toda a mágoa e o rancor retornavam à flor da pele em pouco tempo. Tempo o suficiente para que eu não pudesse nem terminar de limpar o sangue de meus lábios.

Eu me alimentava dos sentimentos das minhas vítimas. Eu sentia cada pequena sensação deles.

Eu não queria admitir, mas estava me transformando em um monstro, e eu não queria olhar para mim mesmo quando isso tudo terminasse.

As coisas realmente não estavam bem para o meu lado.

Preferi deixar este beco ensanguentado para trás e subir para os telhados novamente. Lá em cima, pude ver Peter e Charlotte brincando entre uma casa e outra.

Fiquei sentado com toda a minha nostalgia e pesar. Eu não queria atrapalhá-los, interromper, então fiquei quieto, em total silêncio.

Mesmo assim, Peter me encontrou e, mesmo pela distância que estávamos – provavelmente, uns cinquenta metros –, eu pude sentir que a sua alegria se transformou em dor, em tristeza.

Eu estava levando meus amigos para o inferno comigo!

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