Solitário - Capítulo 51: Os Cânions

1941

Eu estava levando meus amigos para o inferno comigo!

Já estava cansado do que aguentava todos os dias. Peter e Charlotte estavam sempre em harmonia um com o outro. Nunca havia brigas, discussões. Nada! Nem um tom de voz alterado. Nada!

Aquilo me dava nostalgia.

Eu tentava respeitá-los, manter-me o mais longe possível deles enquanto estivessem vivendo a vida particular deles, a vida “íntima”, se é que vocês me entendem...

Mas era justamente nesta hora, em que eu me via entre a cruz e a espada.

Eu não tinha o que fazer. Nunca tinha algo a fazer. Era sempre ficar sentado em algum lugar e ver as formigas carregando grandes nacos de folhas para cima e para baixo nas árvores, na terra, ou... se alimentar!

Aí se encontrava o outro problema iminente. Alimentação. Sangue.

Cada vez que eu me alimentava, eu não consumia apenas o sangue do indivíduo, mas como também todos os seus sentimentos. O medo, a fúria, o rancor, o nervosismo... Tudo vinha para mim.

Maldito dom...

Nunca me amaldiçoei tanto como nestes últimos anos...

Sinto que, mesmo tendo Peter e Charlotte comigo, eu estou sozinho neste mundo. Ninguém é capaz de me confortar. Não há abrigo para um ser como eu. Um monstro como eu.

A depressão aparentava ser a minha única amiga permanente. Nada a tirava de meu lado. Éramos companheiros inseparáveis.

Ela se mantinha sempre calada, acomodada, serena... Mas todo esse comportamento só era assim quando eu não tinha um ser humano na minha frente. Um ser de sangue humano. Nesses momentos, toda a sua tranquilidade se esvai e dá lugar a um ser completamente agitado, que deixa o grito aterrorizado da fome ecoar pelos ventos.

Eu não queria mais isso.

Isso estava me matando.

“Já que isso acontecia, por que não terminar o serviço de vez?” Essa frase repercutia em cada espaço de minha cabeça. Minha mente se atordoava com as sílabas. Eu me embriagava com a fonética do suicídio.

Eu não tinha ninguém que fosse capaz de me compreender. Não havia pessoas capazes de me salvar. Eu era um caso perdido. Não havia motivos para continuar infringindo essas dores a outras pessoas. Isso cabia a mim, e somente a mim.

Ninguém mais tinha que sofrer por minha causa.

Sou honesto o bastante para não deixar que outros sofram por mim.

Isso não aconteceria.

Isso teria um fim.

Tentei caminhar tranquilamente até o topo do cânion. Era alto o suficiente para que ninguém continuasse vivo. O vento batia em meu rosto como se quisesse me fazer entender o quão sério era o ato que eu estava a fazer. Os meus cabelos ricocheteavam meu rosto.

Eu podia ouvir alguns galhos – ou seriam pedras? – retinindo ao se desprender ou cair da imensa altura.

Tudo estava tão aparte agora. Aqui, eu não era mais aquele homem problemático. Meus demônios ficavam apenas às escuras tentando, sem sucesso, fazer com que eu voltasse. O sol era o único que parecia compreender o meu momento. Ele respeitava aquilo. Os fortes raios em tons de laranja, vermelho e amarelo me banhavam. Eu quase podia afirmar que sentia um abraço do Sol.

Se não fosse isso, pelo menos um cumprimento. Com o calor do astro, olhei para ver a profundidade. Eu tinha de ter certeza de que a situação iria funcionar bem. Eu sabia como isso era difícil de acontecer, ainda mais assim, mas o Sol fez com que, junto do calor, viesse a coragem.

Eu tinha de fazer isso. Pelo menos tentar.

Olhando de cima, era longe a distância. Calculei bem, dei a volta, peguei impulso correndo e pulei.

A primeira vista, a queda livre foi como se eu pudesse voar. Eu era um passarinho livre agora. Eu poderia, enfim, chegar ao meu ninho. Era tudo o que eu queria. Era só o que eu queria.

Bati em algo e rolei vários metros. Não parei de rolar – até conseguiria com força, mas não era este o meu intuito. Dei impulso com os pés após me ajeitar o suficiente para outro voo.

Eu caía sem parar.

Fechei os olhos. Podia ouvir facilmente o zumbido das coisas passando por mim, mas eu não queria saber o que eram.

O retinir, porém cessou. Encontrei-me em um forte estrondo com o chão que ecoou por todo o vale assustando alguns pássaros ao longe.

Ok, eu sabia que não daria certo.

Olhei para cima, o Sol ainda estava lá me confortando. Procurei pelo local de onde pulei – provavelmente foram uns mil quilômetros de queda, sem dúvida...

Maravilhoso. Eu teria de encontrar algum outro jeito. Comecei a correr procurando pela saída daquele imenso labirinto de imensas rochas – não digo montanha, porque pressuponho que em montanhas existam árvores. Nestas apenas havia pequenas plantas e pedaços de rochas que deslizavam abaixo.

A situação não estava boa ali embaixo. Se alguém aparecesse aqui neste fim de mundo, eu me arrependeria pelo resto de minha pouca vida do que eu poderia fazer...

Resolvi escalar uma das grandes rochas – escolhi a que tinha seu paredão mais na diagonal. Apenas uma vez deixei que meu pé escorregasse, mas isso foi sem querer... Foi por descuido.

Voltei ao topo e fui procurar por água.

Encontrei a forte correnteza de um rio. Um rio de coloração marrom, cheio das partículas das rochas e do fundo do rio. Esta água me enojava, e isso me trazia más lembranças – em especial de quando eu estava com... em Mont... Ok, a água me trazia más lembranças.

Eu não sabia se devia me afastar daquele local, já que “estas” lembranças retornavam a mim. Mas... se já estou aqui, qual o motivo de não encarar o desafio?

Aproximei-me lentamente da beirada. A intensa correnteza levava tudo o que se aproximava demais. Era como a cobra esguia, que se aprumava para o ataque sem deixar que a vítima percebesse o que estava a acontecer, e então, a menor sensação de descuido, ela dá o bote.

Em meu caso, a cobra não precisaria se dar ao trabalho de se aprumar, nem nada. O bote não tinha de acontecer. Eu estava me entregando. Era diferente.

Pulei.

Senti o gélido toque das águas em cada centímetro de meu corpo.

Entreguei-me às águas. Não lutei, pois era uma batalha perdida. Não havia sentido em lutar, justamente agora.

Deixei a água levar meu corpo livremente. Eu subia e descia conforme as elevações submersas do solo.

Parei de respirar – aquilo só era necessário quando íamos caçar mesmo... Caçar!

“Não. Esquece isso, Jasper!” Mas mentir para si mesmo era muito mais difícil do que para qualquer outra pessoa. Era quase impossível.

Fechei os olhos.

Abri a boca.

A água foi entrando em mim, e eu fui afundando.

Eu estava submerso. Abri os olhos, e o que vi foram as imagens do mundo de fora distorcidas pelo ribombar da água e alguma bolha, espuma.

Continuei afundando.

Lá embaixo, não estava mais tão claro. Não tocava o chão ainda, mas eu queria fazer isso. Sentir o toque do que nunca havia sido tocado por uma pessoa.

Estava começando a escurecer mais e mais, e o que eu enxergava, eram apenas borrões marrons.

Um galho ou outro acabava que por trombar com meu corpo. Ninguém estava controlando os movimentos ali, apenas a água. Única e justamente a água.

Havia muitas curvas, eu pude sentir.

Sim, agora eu cheguei a sentir rapidamente o pedroso chão. Era tudo igual, tudo feita da mesma matéria. Rocha em formas de montanhas, rochas no fundo do rio.

A escuridão aumentava, e eu continuava a ser levado – agora com menos força.

Fechei os olhos e quis dormir. Já vi algumas pessoas fazendo isso de noite, elas se acomodavam, suspiravam e então descansavam tranquilamente. As crianças ficavam como pequenos anjinhos. Os adultos pareciam esquecer-se de todos os seus problemas.

Aquilo era um alívio para todos. Por que não poderia ser para mim também?

Tentei fazer mesmo. Fechei as mãos flexionando-as e depois as abri, arrumei meus braços em uma posição que os deixava em harmonia com os músculos de meu ombro e torso. Eu estava confortável.

Suspirei, e doeu. Tudo ardeu. Eu senti como se um pouco de fogo havia sido respirado, e pude o sentir em todo o meu sistema respiratório. Creio que, se não estivesse em algo verdadeiro, isso renderia boas gargalhadas, pois agora, justamente agora, no fim, eu estava conhecendo o quão profundo e larga era a minha traqueia. Agora eu sabia onde estava, mais especificamente, o meu pulmão e qual o seu tamanho.

Pena que isso só estava acontecendo agora.

Relaxei mais ainda e fiquei vagando solitário – sendo arrastado – pelos fundos do rio.

Poderia dar certo, quem sabe, o que eu estava planejando.

Mas não deu.

E eu sabia que a resposta seria essa, mas eu estava confiante, esperançoso que desse certo. Eu sabia a solução para os meus problemas, mas não poderia fazer sozinho.

Voltei para a margem do rio com algum esforço. Eu estava ensopado e cansado, e toda aquela água que tinha entrado, agora tinha que sair...

Olhei para o céu, ainda estava dia. Algumas horas se passaram e eu tinha de encarar a realidade. Hoje não foi possível, mas... quem sabe outro dia?

Assim que toda e qualquer molécula desta maldita água saiu de meu corpo, retomei a corrida, desta vez, de volta ao local de onde tinha vindo. Parei no topo de uma rocha, e percebi, com meus conhecimentos geográficos, que tinha de voltar para o Leste.

Corri preocupado com Peter e Charlotte. Eu não queria vê-los preocupados comigo, novamente. Também não queria dar satisfações.

Ao chegar lá, minhas roupas já estavam secas novamente – graças a minha velocidade vampiresca e ao bom Sol do Arizona.

“Jasper, por onde andou?” Charlotte me indagou.

“Fui andar por aí!” me esquivei.

“Mas demorou muito!”

“É que fui... descobrir alguns... caminhos para passeios!” tentei mentir – eu era péssimo nisso.

“Passeios? Hmmm... Jasper, está tudo bem?” – ela realmente estava preocupada comigo.

“Sim, estou bem” eu fui sincero.

“Posso lhe fazer uma pergunta?”

“Sim, claro! Disponha!” – eu sei que me arrependeria depois...

“O que aconteceu com seu cabelo? E suas roupas?”

“Foram duas!”

“Ok, mas... o que aconteceu? O que encontrou por lá, no passeio? Algum monstro horripilante?”

“Neste sol? Não, acho que o único monstro que estava era...” parei bruscamente no meio da frase, eu sabia que, se a terminasse com “eu”, ela ficaria chateada, “era uma enorme ratazana do mato. E uma águia também...”

“Quais eram as cores da águia?”

“Cinza, preto, branco... as cores de sempre...”

“Não, não, nem sempre” ela me repreendeu com um dedo balançando. Na face, um biquinho. “Ontem de noite encontrei uma águia linda com tons de marrom.”

“Era outra espécie então...”

“Era linda!”

“Gosta de águias?”

“Na verdade, de pássaros em geral, mas poucas vezes os vejo de tão perto. Você sabe o porquê.”

“Sim, sei” respondi rindo.

“Então, vai me responder?”

“O que?”

“Roupas e cabelo!”

“Ah, encontrei um rio e resolvi dar um mergulho!”

“Hmmm... só?”

“O que mais você quer saber?”

“Por onde andou?”

“Já lhe disse! Fui andar por aí, conhecer todo o local!”

“E o que encontrou, amigo?” Peter chegou.

“Rochas, terra seca, Sol escaldante, animais fugindo de mim... As coisas de sempre daqui da região e de alguns outros locais também.”

“Hmmm... Só encontrou isso na região? Eu pensei que havia coisas mais interessantes por aqui!” ele disse descontraído.

“Bem, a única coisa interessante são os cânions. São muitos!”

“É?” Charlotte se animou. “Qual a altura?”

“Quilômetros, provavelmente.”

“Amor” Charlotte disse já se atirando aos braços de Peter, “vamos lá mais tarde?”

“Sim, claro.”

“Será um ótimo passeio!”

“Como eu disse, eu estava buscando novos lugares para passeios, e encontrei. Como ainda duvidou de mim, Charlotte?!”

“Err... desculpe-me, Jasper... É que você voltou tão... deprimido...”

Bem, isso era verdade. Mas eu era péssimo em mentir, os dois sabiam tinham um ótimo conhecimento disso... o que mais eu poderia fazer? Tentar reprimir o quão péssimo eu era em mentir, e para isso, era preciso meias respostas.

“Não se preocupe comigo!”

“Tem certeza, Jasper?” Peter se preocupou também – isso devia ser transmissível, pois Peter não estava assim até Charlotte encostar-se nele.

“Absoluta!”

“Bem, então por que não vamos agora?” Peter propôs.

“Isso seria maravilhoso!” ela disse já arrumando os cabelos em uma trança. “Estarei pronta em poucos segundos!”

Seus finos e leves dedos se moviam em uma velocidade fora do normal. Realmente, em poucos segundos, seus fios de cabelos estavam todos entrelaçados em uma delicada trança de lado. Ela sorriu e se levantou contente.

“Estou pronta! Já podemos ir!”

Peter foi ao seu lado e os dois deram as mãos. Sentei-me a sombra.

“Vem conosco, Jasper?” Peter me convidou.

“Não, é a vez de vocês descobrirem os segredos da região!”

“Ok, então. Divirta-se na sombra!”

“Obrigado. Divirtam-se nas rochas!”

Eles partiram – Charlotte ainda olhou para trás enquanto partiam, eu ainda estava olhando, então ela fez um breve aceno de tchau. Respondi com outro aceno e então desviei o olhar.

Agora, sozinho novamente, eu tinha de encontrar outra maneira de pôr um fim a isto tudo!

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