Solitário - Capítulo 59: O Baú

Antes de deixar Houston, resolvi dar uma última olhada em minha antiga casa.

O dia estava nublado, então ninguém percebeu quem eu era, ou o quê. Foi perfeito! Tudo havia corrido bem: Eva e sua família estariam morando em breve na cidade com tudo o que precisavam; minha casa e os bens materiais dentro dela se tornariam artigos de museu e pesquisa; ninguém soube que eu era o Jasper Whitlock em pessoa; ninguém descobriu que eu era um vampiro sanguinário, e; eu estava com o meu antigo diário.

Mesmo assim, eu ainda sentia que havia algo a mais para me preocupar. Algo que me prendia ali, e que eu deveria encontrá-lo antes de fazer quaisquer escolhas...

Fui caminhando pela casa esperando que meu coração me dissesse o que eu ainda estava procurando. Em cada cômodo que eu passava, eu permanecia alguns segundos parado a espera de uma resposta.

No quarto de Bryan eu permaneci alguns segundos a mais do que os demais... De alguma forma, eu esperava que fosse a lembrança dele que me fazia sentir assim, mas não era.

Passei pelo quarto de meus pais e também não houve nada. No entanto, havia algo em meu quarto. Eu esperava tudo, menos que o que me prendia ali ainda estivesse em meu quarto.

Entrei incerto. Ok, eu estava assustado, mesmo que não gostasse de admitir isso. De todos os cantos da casa, o único lugar que me fazia continuar era o meu quarto, o local onde eu já tinha passado a noite e não tinha encontrado mais nada.

Mesmo assim, eu tinha de descobrir o motivo que me prendia aqui.

Sentei na beirada da cama e fiquei olhando para os cantos do quarto, e o chão de madeira. Tudo estava exatamente igual há quase um século. Não havia nada a encontrar, e isso me incomodava.

Deitei na cama e fechei os olhos. Talvez fosse isso o que eu precisava, de um pouco de humanidade. Fiz de conta que estivesse dormindo, e isso apenas aperfeiçoou ainda mais os meus outros sentidos.

Alguns carros se cruzavam nas estradas, pessoas conversavam... As coisas de sempre.

Abri os olhos sem vontade de me levantar, ficar aqui, na verdade, era uma sensação muito boa. Eu me sentia... em casa, literalmente.

Fiquei encarando o teto de madeira branca e o lustre todo empoeirado. Quando a pouca luz do dia batia em seus cristais, ela revelava uma imensidão de cores. Havia reflexos por todo o teto, o que faziam parecia ser vários arco-íris... O que me fazia lembrar minha infância.

Assim que pensei nisso, em quando eu não passava de um pequenino moleque, senti uma forte pontada em meu peito. Havia algo a se encontrar aqui, e isso pertencia ao meu passado, mais especificamente de quando eu era criança.

Eu estava confuso, e ficava mais ainda enquanto tentava descobrir o que, afinal de contas, eu precisava ainda.

Eu não poderia demorar muito, pois a mãe de Eva ainda estava aqui na casa, e em breve, Eva poderia voltar. Não seria algo bom, pelo menos para mim, estar aqui quando ela voltasse. Eu teria de lhe explicar muitas coisas, talvez coisas até demais, e eu não estava a fim de correr estes riscos...

Não agora!

Se algum dia sua vida estivesse em perigo, talvez eu lhe conte então. Mas enquanto ela estiver assim, bem, não conto a verdade nem se ela me pagasse! Até por que o verdadeiro tesouro de minha vida, eu já consegui salvar...

Agora eu tinha de procurar por algo...

Levantei-me e fui para o guarda-roupa. A roupa que eu estava tinha se sujado um pouco na volta da prefeitura, e eu queria vestir algo novo. Algo... meu!

Comecei a puxar as roupas que estavam guardadas, todas dobradas com perfeição. Mas a perfeição só durou até aquele momento, pois eu acabei fazendo a maior bagunça ali dentro.

Eu me arrependeria depois...

Peguei uma camisa de coloração clara, e uma calça cinza. Troquei de sapatos, peguei emprestado do antigo “eu” uma pequena mochila para guardar o diário e mais alguma roupa, que escolhi ser mais uma camisa.

Olhei em volta pela última vez. Não havia nada a encontrar.

Comecei a contar tudo o que eu já tinha xeretado. Tudo já tinha sofrido em minhas mãos, pois todos estavam no chão ou rachados – por que, sem querer, acabei segurando com força demais uma jarra de água que costumava ficar em meu quarto. Ela me trazia boas lembranças, e por fim acabei não tendo a delicadeza para segurá-la sem estragar.

Eu me sentia um brutamonte às vezes... Principalmente com objetos tão quebráveis quanto à jarra de porcelana...

Comecei a andar em círculos pelo quarto. Foi só então que tropecei em meu antigo baú, o que eu já tinha revirado antes. Talvez, quem sabe... Não faria mal a mais ninguém fuçar mais um pouquinho.

Além de que não seria fuçar nas coisas se as coisas são suas, na verdade...

Levantei a tampa do baú por completo, deixando-a apoiada no pé da cama. Não havia nada de diferente de quando eu tinha revirado à noite, nada tinha aparecido lá de repente.

Mas, então, percorreu-me a ideia de que eu pudesse ter deixado algo passar despercebido. O que fazia sentido, visto que eu estava tão emocionado ao reencontrar meus velhos brinquedos.

Fui retirando os pedaços de brinquedos novamente, e assim esvaziei o baú de novo. Fiquei desesperançoso, afinal, eu realmente estava achando que ali estava o que eu procurava.

Levantei-me e chutei o baú, agora com raiva, mas não forte o suficiente para estragá-lo. Isso seria como dar um tiro no próprio peito – apesar de que... Não, ok, deixa para lá...

Assim que ele chacoalhou ruidosamente, percebi um mero brilho no fundo escuro do baú. Olhei diretamente para lá, e percebi que havia um brinquedo. Sim, mais um brinquedo que provavelmente estaria quebrado, mas... Não, este não estava quebrado, só estava perdido!

Ele estava solitário assim como eu, então resolvi dar-lhe uma oportunidade e mostrar-lhe a pouca luz do dia que irradiava lá fora. Ele estava incrustado em um dos cantos, portanto deve ter permanecido aí por quase, se já não for, um século.

Quando o senti em minhas mãos, soube na mesma hora que era ele quem eu estava procurando: o soldadinho de chumbo que eu costumava brincar com meu irmão. O mesmo soldadinho que eu tramava estratégias e táticas de guerras para invadir o território inimigo, geralmente meu irmão, e destruir tudo que havia em sua posse.

E também foi com ele que me lembro ter ganhado algumas broncas de minha mãe e avó, pois eu gostava da conquista e da glória de uma guerra, enquanto elas duas tentavam me repreender por pensar nesses tipos de coisas desta forma...

Nunca dava certo, é verdade, pois eu apenas continuava brincando de soldado mais e mais.

Quem diria, não?! Eu brincava de soldado quando pequeno, e mal sabia que quando crescesse, fosse me tornar não só um major da Guerra Civil Americana, quanto um vampiro que também lutava para manter os territórios no México.

Ainda sou um soldado, e creio nunca deixar de ser. Continuo ainda lutando, mas agora os objetivos não são os mesmos.

Se continuar pensando assim, posso afirmar que todos são soldados, pois todos lutam por algo.

Atualmente, por exemplo, luto contra o monstro sanguinário existente em mim. O monstro que insiste em fazer com que eu me alimente de sangue humano, com que eu mate pessoas para que eu possa sobreviver...

Isso não é algo bom a se listar como objetivo, mas que alternativa eu tinha? Apenas lutar o máximo que eu podia, mesmo que isso que fizesse sofrer!

Pronto! Chega!

Eu já estava em meu limite, e finalmente sentia que tudo estava dando certo. Eu tinha tudo o que precisava e os problemas estavam solucionados. Era a vez de partir novamente, agora, para um novo lugar!

Sem mais estradas, paisagens ou pessoas conhecidas... Eu queria mudar para ser alguém, e eu sentia que se quisesse mesmo isso, eu teria de sofrer as consequências de meus atos.

Pois então eu assim o faria.

Lugar novo, pessoas novas!

Saí da casa e corri para bem longe dela, sem me preocupar com a direção. Embaixo da sombra de uma grande árvore, parei para pensar melhor.

Havia algo ou um lugar que eu gostaria de conhecer?

Tentei, tentei, mas não consegui pensar em nada, então abri o diário para ver se eu poderia ter alguma dica. E justo na primeira página eu encontro um nome: Edgard Allan Poe. O escritor tinha morrido mais ou menos naquela época.

Pensei no nome, e me lembrei de ter ouvido que sua casa estava em exposição em algum lugar lá na Filadélfia, Pensilvânia.

Ok, este seria meu novo destino: Filadélfia!

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